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Caça ao dragão   jackie pullinger e andrew quicke
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11/09/2009
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Aviso:
Os e-books disponiveis em nossa página, são
distribuidos gratuitamente, não havendo custo
algum.
Caso você tenha condições financeiras para
comprar, pedimos que abençoe o autor adquirindo
a versão impressa.
Título do original em inglês:
Chasing the Dragon
Copyright © 1980, Jackie Pullinger.
Publicado na Inglaterra por Hodder
and Stoughton, Londres.
Tradução de Myrian Talitha Lins
Primeira edição, 1982
Todos os direitos reservados pela
Editora Betânia S/C
Caixa Postal
5010 30.000 Venda Nova, MG
Composto e impresso nas oficinas da
Editora Betânia S/C
Rua Padre Pedro Pinto, 2435
Belo Horizonte (Venda NovaX MG
Printed in Brazil
Índice
Prefácio
Glossário
1. Rastros de Sangue
2. Para a China de "Canoa"
3. Uma Cidade Chamada Trevas
4. O Clubinho
5. Luz nas Trevas
6. As Quadrilhas
7. O "Irmão Maior" Está Olhando por Você
8. Perseguindo o Dragão
9. "Doenças" da Infância
10. É Jesus Mesmo
11. As Casas de Estêvão
12. Acolhendo Anjos
13. Testemunhos
14. E Por em Liberdade os Cativos
15. Andar no Espírito
Para minha família, especialmente meu Pai.
"E foi expulso o grande dragão, a antiga
serpente, que se chama diabo e Satanás, o
sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado
para a terra e, com ele, os seus anjos...
Agora veio a salvação, o poder, o reino do
nosso Deus e a autoridade do seu Cristo,
pois foi expulso o acusador de nossos
irmãos..."
Ap 12.9,10.
Prefácio
Fiquei conhecendo Jackie Pullinger em 1968,
quando fui a Hong Kong para fazer uma filmagem.
Um amigo nos apresentou, e ela me falou de seu
trabalho na Cidade Murada. Fiquei fascinado pelo
que me narrou, e fui visitar o lugar em sua compa-
nhia. Era exatamente como ela o descrevera.
Nos anos que se seguiram continuei a manter
contato com ela, vendo seu trabalho desenvolver-se
mais. O jornal Sunday Times publicou um relato de
sua obra em 1974. Em 1978, ela foi à Inglaterra para
falar sobre seu trabalho e, nessa ocasião, consultei-a
sobre a possibilidade de, juntos, escrevermos um
livro, dando um relato mais completo de tudo quanto
lhe acontecera. Concordou, mas não sem certa
relutância, e em 1979 voltei a Hong Kong.
Alguns nomes e lugares citados no livro
tiveram que ser modificados, para que as pessoas
implicadas não sofressem nenhum tipo de prejuízo, a
maioria das quais ainda vive naquela cidade.
Excetuando-se esse detalhe, tudo o mais foi narrado
da forma como ocorreu. Muitos dos eventos aqui
narrados podem ser comprovados em outras fontes.
Tenho que agradecer a muitas pessoas que nos
ajudaram na feitura deste livro. Entre elas gostaria de
mencionar Marjorie Witcombe e Mary Stack, de Hong
Kong, que nos emprestaram sua casa, a Susan
Soloman, da Califórnia, a meu irmão Edward e a seus
colegas do Banco Mundial, em Washington, onde o
manuscrito foi terminado, e sobretudo à minha
esposa Juliet, que fez uma excelente revisão e deu sua
contribuição durante toda a produção do livro. Esta-
mos narrando aqui incidentes ocorridos até 1976
apenas. O que aconteceu de lá para cá terá de
aguardar um novo livro.
Andrew Quicke
Londres
Abril de 1980
Glossário
Amah: empregado (a).
Congee: um mingau de arroz que se come no
café da manhã.
Daih lo: Irmão Maior.
Daih ma: Mãe Maior, a esposa mais velha de um
chinês.
Daih pai dong: barraca de rua.
For-gei: garçom ou operário.
Fui-goih: arrepender-se.
Gong-sou: conversações entre quadrilhas
inimigas, como tentativa de solucionar diferenças.
"Hai bin do ah?": De onde você é?
Hak Nam: Trevas (Nome que muitas vezes é
empregado para identificar a Cidade Murada de
Hong Kong.)
Hawh-fui: sentir muito um erro cometido.
Kai na: madrinha
Kai neui: afilhada (Estes dois termos são
empregados para designar o relacionamento de uma mulher
com uma criança que ela toma para criar.)
Kung-fu: um tipo de arte marcial chinesa.
Lap-sap: lixo.
Mama-san: mulher que tem a seu encargo várias
prostitutas jovens ou bar-girls.
"M'gong?": Não quer falar?
Mintoi: edredom.
"Moe yeh": Nada.
Pahng-jue: chefe de um salão onde se vende ou
toma drogas.
"Pa mafan": medo de complicações.
Pin-mun: comércio ilegal.
Poon Siu Jeh: Pullinger em chinês.
Sai lo: Irmão Menor.
Sai ma: Mãe Menor, esposa mais nova ou
concubina de um chinês.
Seui Fong
14 K Nome das diversas quadrilhas tríades que
são ilegais em Hong Kong.
Ging Yu
Wo Shing Wo
Siu yeh: lanche, merenda.
Tin-man-toi: literalmente meteorologista;
significa pessoa que vigia ou guarda.
Wunton: espécie de pastel de camarão ou carne
de porco.
"Yau moe gau chor." Você deve estar louco!
"Yaunk": Estou aqui.
"Yeh sou ngoi nei." Jesus te ama!
1
Rastros de Sangue
O guarda da porta soltou uma cusparada no
chão do beco, mas fez um aceno de cabeça dando-me
permissão para passar. Deixei-o ali agachado, e me
espremi no pequeno vão entre duas construções escu-
ras, para entrar nessa estranha "cidade" chinesa, tão
temida pelo povo de Hong Kong.
Por um instante, a escuridão do interior dela
me deixou meio cega, e embora a essa altura já
conhecesse o caminho muito bem, segui em frente,
pisando cautelosamente na estreita ruela. Mantinha
os olhos voltados para o chão por duas razões: para
não pisar nas porcarias que escorriam para o rego
aberto e para não receber em pleno rosto o lixo que
era atirado das janelas à rua embaixo. Bati palmas a
fim de espantar os ratos; foi preciso bater várias
vezes, com força, para afastá-los.
Foi então que avistei uma pequena mancha
vermelha, e logo depois várias gotas. Não havia dú-
vida de que era sangue. Senti a tensão no estômago,
pois cria que sabia de quem era aquele sangue. O juiz
me confiara a guarda de Ah Sor, pelo período de um
ano. Mas uma quadrilha estava atrás dele para
castigá-lo, devido a casos não solucionados. Ao que
parecia, haviam-no encontrado. Avistei outras
daquelas manchas lustrosas, e passei por mais dois
tin-man-toi, os vigilantes das quadrilhas que controla-
vam a Cidade Murada.
Virei uma esquina e entrei na rua onde estavam
situados os principais salões de jogatina, administra-
dos pelos "irmãos" da quadrilha 14K. Passei pelos
terríveis antros de ópio, onde se achavam outros
vigias.
Na rua seguinte, as manchas de sangue já se
apresentavam mais numerosas. Estava impaciente
para descobrir de quem era aquele sangue. Mas, ao
mesmo tempo, a idéia me apavorava.
Cheguei à rua principal, uma das poucas que
possuía iluminação na Cidade Murada. Tive que
andar com mais cuidado ainda, ao passar por outro
salão de jogo. As prostitutas me reconheceram e
gritaram de lá de seus compartimentos, junto ao
cinema de filmes pornográficos:
— Sr.ta
Poon! Poon Siu Jeh, quer nos dar um
auxílio?
E estendiam as mãos cujos dorsos estavam
marcados de pontas de agulha. Em seguida, entrei em
minha ruela, onde ficava o salão que alugara e que
abria todas as noites para os rapazes das quadrilhas.
A porta avistei uma poça de sangue maior. As
pessoas que por ali se encontravam pareciam total-
mente indiferentes.
— O que aconteceu? indaguei temerosa.
Um velho cantonês abanou a cabeça e
resmungou:
— Nada, nada!
Num lugar controlado pelas quadrilhas tem
que se viver com as mãos sobre os olhos, se quiser
sobreviver. É mais seguro não ver nada, não se
envolver com nada.
Ali perto, brincavam várias crianças, com
bebezinhos amarrados às costas, despreocupadas,
como se nada tivesse acontecido.
Temendo por Ah Sor, destranquei o portão de
ferro, e entrei em nosso "clubinho". Estava escuro,
úmido e malcheiroso. Era muito difícil conservá-lo
limpo, pois não havia água encanada. Toda sorte de
insetos e bichinhos saíam dos esgotos e andavam
pelas paredes do salão. Eu tinha mais medo das
aranhas que vinham das fossas, do que dos
quadrilheiros. Naquela noite, porém, toda a minha
atenção estava concentrada em Ah Sor.
Sua mãe o tinha vendido, quando ainda era
bebê, para um homem viciado em ópio, que não tinha
filhos e temia morrer e ir para o inferno sem um filho
para adorar seu espírito. Por isso, Ah Sor crescera
com grande carência afetiva, mas, ao mesmo tempo,
não sabia reconhecer um afeto sincero, quando lhe
era oferecido. A fim de equilibrar essa forte sensação
de rejeição, ele se agregou a uma quadrilha. Cresceu
brigando nas ruas e recebeu sua primeira sentença de
detenção na prisão juvenil aos treze anos. Durante os
últimos anos, eu tinha tido conhecimento da história
de sua vida e dos seus problemas e procurara ajudá-
lo, mas ele continuava na mesma, sendo preso várias
e várias vezes. Além disso, era viciado em drogas,
como seu pai adotivo. Sentei-me num de nossos
toscos bancos do clubinho e fiz a única coisa que po-
dia — orei. Cinco minutos depois uma menina entrou
ali correndo, arfando pelo esforço.
— Sr.ta
Poon, a senhora deve ir imediatamente
ao Hospital Elizabeth. Estão chamando a senhora.
— Quem está lá? É Ah Sor?
— Só tenho que dizer-lhe para ir depressa. É
alguém que está morrendo, concluiu e logo
desapareceu.
Tranquei tudo e saí. No caminho fui
arrebanhando alguns rapazes que conhecia. Fora da
Cidade Murada; pegamos um táxi.
— Para o Hospital Elizabeth, depressa! Nosso
amigo pode morrer.
Os motoristas de táxi de Hong Kong não
precisam de muito incentivo para correr, e o nosso ia
zigue-zagueando entre uma pista e outra, com apenas
uma das mãos no volante. Eu ia orando pelo
caminho, as mãos apertadas uma contra a outra.
"Talvez meu amigo morra", pensei em
cantonês.
Ele tinha tido uma vida tão miserável, que nem
era vida, e cu desejava proporcionar-lhe coisa melhor.
"Salva-o, Senhor!", orei baixinho. "Faz com que
ele se salve."
Então, o carro parou abruptamente com um
guincho agudo dos pneus, e nós saltamos do veículo
desejando ver Ah Sor antes que morresse.
Mas não era Ah Sor. Fora Ah Tong quem
deixara aquele sinistro rastro pelas ruas da cidade. Eu
o conhecia apenas pela sua fama de ser um dos mais
depravados chefes de quadrilha. Até mesmo seus
colegas o desprezavam, pois ele costumava ir a festas,
seduzia mocinhas e depois as vendia, com a vida
assim arruinada, para o comércio do meretrício.
Ao que parecia, a quadrilha Seui Fong havia-se
emboscado num beco escuro, próximo ao nosso salão,
armada de facões e canos. Isso era parte de uma
guerra de quadrilhas por causa de um dos "irmãos"
que fora prejudicado havia alguns anos. O alvo deles
era Ah Sor. Quando este ia subindo a rua em compa-
nhia de Ah Tong e de outro "irmão", não se apercebeu
da emboscada. Então a quadrilha os atacou,
procurando atingir sua vítima. Mas Ah Tong viu-os
logo e atirou-se à frente do outro, para protegê-lo.
Alguém atingiu seu braço, que foi quase seccionado, e
os agressores o deixaram ali caído numa poça de
sangue. Ah Sor e o outro rapaz o ampararam e saíram
com ele aos trambolhões até chegarem a uma das
saídas da cidade, onde pegaram um táxi. Deixando o
colega no hospital, fugiram imediatamente. (Há sem-
pre policiais postados nos hospitais, que os interro-
gam sobre as brigas das quadrilhas.)
A única informação que consegui extrair da
enfermeira foi que o paciente provavelmente perderia
o braço, se não a vida.
Sentada ali no hospital, pensei no que ouvira e
fiquei impressionada com o gesto do rapaz. Ele era
mau, e levava uma vida terrível, mas revelara um
amor muito raro. Jesus já havia dito: "Ninguém tem
maior amor do que este: de dar alguém a própria vida
em favor de seus amigos."
Telefonei para alguns amigos e pedi-lhes que
fossem ao hospital. Passamos a noite toda ali, orando.
Quando a família apareceu, ficaram grandemente
espantados com nossa atitude, para eles, incompreen-
sível. O que fazíamos nós, pessoas direitas, cristãs,
orando pelo seu filho? Ele era mau e só merecia
mesmo morrer.
Afinal, a irmã nos deu permissão para entrar na
enfermaria onde ele se encontrava. Postei-me ao lado
do leito e olhei para Ah Tong. Estava terrivelmente
pálido, devido à perda de sangue, e inconsciente.
Com muito cuidado, impusemos as mãos sobre ele e
oramos em nome de Jesus. E enquanto estivemos lá,
ele não recobrou os sentidos. Os boletins médicos do
hospital, porém, eram cada dia mais animadores.
Parecia que ele estava melhorando incrivelmente.
Afinal, cinco dias depois de ter sido atacado, ele
recebeu alta. Fora milagrosamente curado, e não
apenas sobrevivera, mas também conservara o braço
em perfeitas condições.
Alguém poderia pensar que, depois de haver
experimentado um milagre como esse, Ah Tong teria
muito prazer em falar com um dos intercessores, mas,
nos meses que se seguiram, mal ele me avistava, saía
correndo. Estava com medo de mim. Contudo, recebi
algumas palavras de agradecimento;
— Ele sabe que foram suas orações que o salva-
ram, disse um dos muitos mensageiros com recados
de agradecimento.
Se ele pensava assim, então por que me
evitava? Meses depois vim a saber a razão. Era
viciado em heroína, e precisava de várias doses
diárias. Todo o tempo em que estivera no hospital,
sua namorada lhe levara drogas. Sabia que eu era
crente e que os crentes eram pessoas direitas, ao
passo que os viciados eram depravados. Por isso, não
lhe parecia correto vir ele mesmo expressar sua
gratidão. Sentia-se por demais impuro, para se
aproximar de um cristão.
Alguns anos depois, Ah Tong entrou pela
nossa porta no meio da noite. Fitou-me com uma
expressão angustiada e disse abruptamente:
— Poon Siu Jeh, estou desesperado. Já tentei
largar o vício muitas vezes, mas não consegui. Será
que pode me ajudar?
— Eu, não, respondi, mas Jesus pode. E creio
que há um fato a respeito de Jesus que você poderá
entender perfeitamente. Faz alguns anos, você se
dispôs a morrer por seu irmão, Ah Sor. Foi um gesto
maravilhoso.
Ah Tong tinha o cenho franzido, ouvindo com
atenção.
— Mas o que você diria de morrer por um
rapaz de outra quadrilha?
— Aaahhh! fez ele e soltou uma cusparada.
Morrer por um "irmão" é uma coisa, mas ninguém
morre por um inimigo.
— No entanto, foi exatamente isso que Jesus
fez. Ele morreu não somente para os de sua
quadrilha, mas por todas as pessoas de todas as
outras quadrilhas. Ele era o Filho de Deus e nunca fez
nada errado. Pelo contrário, ele curava os doentes. Se
crermos nele, ele nos dará sua vida.
Não creio que a mente cheia de drogas de Ah
Tong pudesse absorver todos os detalhes da doutrina
da redenção, mas pude perceber claramente que
alguma coisa havia acontecido. Ele se mostrou
completamente atônito pela idéia de que Jesus
pudesse amar uma pessoa como ele, e sentiu-se
bastante tocado.
Saí depressa com ele, e levei-o para o pequeno
apartamento que tínhamos na ilha de Hong Kong.
Era um apartamento bem pequeno, segundo os pa-
drões ocidentais. Ah Tong se viu na sala, que também
era sala de jantar. Tudo era muito limpo e bem
arranjado. Era mais um lar, e não uma igreja. Mas o
mais extraordinário ali eram as pessoas presentes,
todas sorrindo. Havia vários ocidentais e muitos
rapazes chineses, muitos dos quais ele reconheceu.
Havia ali homens que ele tinha conhecido na cadeia, e
outros que tinham sido seus companheiros de drogas.
Porém, estavam todos belos e felizes, mais fortes e
saudáveis.
Eles se puseram a falar-lhe sobre o poder de
Jesus que lhes havia transformado a vida.
— Você nos conhece, disseram eles. Sabe que
nunca empregaríamos essa linguagem santa, se de
fato não crêssemos nisso. Quero dizer, a Sr.ta
Poon e
esses pastores aqui nunca tiveram de largar as
drogas, e não sabem como é. Eu senti muitas dores,
mas orei a Jesus, como me disseram, e deu certo. A
dor desapareceu e me senti outro. Recebi novas
energias: chama-se Espírito Santo. Falei em língua
estranha, e não senti mais dor nenhuma.
Logicamente, Ah Tong deve ter pensado:
"Se eles podem, também posso. Se Jesus fez isso
por eles, pode fazer por mim também."
Então nos disse que queria crer que Jesus era
Deus e pedir-lhe que modificasse sua vida. Em
seguida, orou e logo seu rosto magro e sulcado de
rugas se relaxou, e ele sorriu.
Os outros ex-marginais ali presentes se
entreolharam felizes, participando daquele milagre.
Ah Tong recebeu o dom de línguas. Quando se deitou
naquela noite, seus olhos tinham uma expressão de
grande alegria, e ele foi-se aquietando mais e mais,
até cair num profundo sono.
O rapaz permaneceu na casa. Não houve
necessidade de passar por uma desintoxicação
dolorosa, que constitui uma tortura tão grande para o
viciado, que pode causar-lhe a morte. Não lhe demos
nenhum remédio, nem mesmo uma simples aspirina.
Todas as vezes que sentia a primeira pontada de dor,
começava a orar na sua nova língua. Sua
desintoxicação processou-se sem nenhum sofrimento.
Não houve vômitos, nem cãibra, nem diarréia, nem
calafrios. Ah Tong começou uma nova vida.
2
Para a China de "Canoa"
Os agentes da imigração subiram a bordo do
navio, e eu era a primeira da fila, ansiosa que estava
para desembarcar. Cedo, de manhã, eu me aprontara
e subira para o convés. A vista que se tinha dali era
de cair o queixo. Lá estavam as montanhas de cumes
brilhantes, sumindo-se à distância, em meio à bruma,
como num quadro oriental. Percebi que meu coração
estava inundado de grande paz, e ao reconhecer que
aquele era o lugar que Deus havia escolhido para
mim, agradeci-lhe.
Eu me achava ali, esperando e contemplando o
mar da China, na "Pérola do Oriente", Hong Kong.
Cercava-nos a enseada, que separava a Ilha Victoria
da Península de Kowloon. Ela estava pontilhada de
barquinhos. Balsas se moviam entre as diversas ilhas
adjacentes, levando operários, e nos ancoradouros
viam-se muitos dos antiquíssimos juncos, que traziam
toda sorte de alimentos da China territorial para a
Colônia. Pareciam estranhamente antiquados em
comparação com os modernos arranha-céus que se
erguiam logo atrás, nas encostas dos morros, na Ilha
de Hong Kong.
Um pouco mais perto, após as docas,
entreviam-se nesgas de ruas chinesas, tão singulares,
encantadoras, com o exotismo próprio do Oriente.
Erguendo os olhos, vi à distância ás colinas dos Nove
Dragões, nos Novos Territórios, que se estendiam até
a fronteira da
China de Mao. Vista do mar, numa manhã
ensolarada, Hong Kong era belíssima.
O agente da imigração não demonstrava o
mesmo entusiasmo que eu. Pegou os formulários
preenchidos, nos quais eu declarava que tinha vindo
à Colônia para trabalhar.
— Onde mora? indagou.
— Na verdade, ainda não tenho onde morar.
— Endereço de amigos?
— Ainda não tenho conhecidos aqui.
— Onde trabalha?
— Bem, não... ainda não tenho emprego.
Ele me fitou com uma expressão de desalento.
Até esse ponto conseguira levar bem a entrevista, mas
minhas respostas não se achavam muito de acordo
com o "figurino". Tentou fazer mais algumas inda-
gações suplementares.
— Onde está sua mãe?
— Na Inglaterra.
— E sua passagem de volta?
— Ainda não tenho.
Não estava nem um pouco preocupada por não
ter passagem de volta, e não compreendia por que ele
tinha que estar. Afinal, seu rosto se iluminou oomo se
encontrando a solução.
— Quanto tem em dinheiro?
Também fiquei satisfeita, pois pensava estar
muito bem financeiramente. Chegara ali quase que
com a mesma quantia que tinha ao embarcar.
— Mais ou menos HKS100 dólares, respondi
orgulhosa.
— É pouco, replicou ele rispidamente. Hong
Kong é um lugar de vida muito cara. Não dá nem
para três dias, concluiu, e saiu apressado, à procura
de seu chefe.
Os dois confabularam por alguns instantes,
depois voltaram para onde me encontrava.
— Embora a senhora seja britânica, falou o
chefe, vamos negar-lhe permissão para desembarcar.
Espere aqui.
Fiquei ali parada, me perguntando o que iriam
fazer comigo. Na imaginação, já os via trancando-me
num camarote, obrigando-me a voltar para a Ingla-
terra. Meus amigos iriam dizer:
— Não falei? Onde já se viu, sair pelo mundo
fora, seguindo a orientação de Deus! Que atitude
mais irresponsável!
O que eu faria? E como viera parar aqui?
Quando minha mãe ficou grávida de mim,
pensou que estava esperando uma criança só, mas
deu à luz gêmeas, o que deve ter sido uma grande
decepção para meu pai, que tinha esperanças de
fundar um time de rugby* e acabou com quatro filhas.
Então procurei compensar o fato comportando-me
como um garoto. Subia em árvores e corria muito,
gostava de brinquedos masculinos e bicicletas.
Uma das recordações mais antigas que tenho,
foi de quando estava com quatro anos. Lembro-me de
que estava encostada ao aquecedor, em nossa casa, e
pensava:
"Será que vale a pena ser bom neste mundo?"
Acabei-me decidindo que, fosse lá o que eu
escolhesse fazer na vida, um dia seria conhecida e
famosa. Mais ou menos um ano depois, eu e minha
irmã gêmea estávamos na escola dominical, e uma
missionária fez uma palestra. Estendendo o dedo
para cada uma de nós, ela disse:
— Será que Deus quer vocês no campo
missionário?
Recordo-me de que logo pensei que a resposta
dessa pergunta nunca poderia ser "não", pois, logica-
mente, Deus quer que todos vão para os campos. Mas
não tinha a mínima idéia do que fosse um campo
missionário. Eu me via a mim mesma sentada à porta
de uma choupana, num lugar qualquer da Africa,
sentindo-me muito nobre e digna.
Contei a uma amiga da escola que desejava ser
missionária. Foi um grande erro. Logo percebi que
todos esperavam que eu fosse melhor do que os
outros.
__________________
* Esporte semelhante ao futebol americano e
ao nosso futebol militar.
— Mas você vai ser missionária! diziam em
tom acusador, quando eu me comportava mal.
Então inventei uma porção de outras carreiras
para desviar a atenção dos outros: regente de orques-
tra; a primeira mulher a escalar o pico do Everest;
artista de circo.
Contudo, interiormente, algumas coisas ainda
me incomodavam. Certo dia, estava passeando na
ponte do trem de ferro com Gilly, minha irmã gêmea.
Como sempre, havíamos conseguido que nossa boa
amiga Nellie nos desse pirulitos sabor limão, e pouco
depois de começar a saboreá-los ocorreu-me um
pensamento terrível: "Afinal, o que estamos fazendo
aqui na terra? Para que serve a vida?" Parecia que me
encontrava presa numa armadilha. Não podia viver
da maneira que me agradasse, pois caso Deus
existisse mesmo, um dia teria que dar satisfações a
ele.
E havia também o problema do pecado.
Deitada no gramado, pus-me a olhar para o céu e a
imaginar que Deus estava lá, com um livro bem
grande, no qual estava o nome de todas as pessoas.
Toda vez que alguém praticava um ato errado, ele
colocava uma marquinha ao lado dele. Dei uma
espiada na linha correspondente ao meu nome e a fila
de marcas estava bastante comprida. Pois bem, não
havia nada que eu pudesse fazer para sanar o mal.
Afinal, encontrei a solução. Os anos estavam a meu
favor, e então resolvi:
— Se eu nunca mais fizer nada errado, nunca,
nunca, talvez algum dia eu ainda pegue *Winston
Churchill e fique igual a ele. Ele é a melhor pessoa
que existe na terra, mas já é muito velho. Então, se eu
parar de pecar agora, talvez eu termine mais ou
menos igual a ele.
No primeiro ano do curso ginasial cometi outro
erro.
_____________________
*O grande líder da Inglaterra na II Guerra
Mundial, muito querido e respeitado por todo o
povo.
Eu e minha irmã estávamos sentadas à mesa do
internato tomando chá com o inevitável pão preto. A
cabeceira encontrava-se uma garota maior de nome
Mirissa. Pensei em iniciar educadamente uma conver-
sa, mas, infelizmente, escolhi o assunto errado. Tendo
ouvido a primeira transmissão radiofônica de um
programa de Billy Graham, mencionei como ficara
impressionada com o evangelista.
— Puro emocionalismo de massa! exclamou a
moça desdenhosa.
Eu tinha tanto respeito pela opinião das
pessoas mais velhas, que depois, todas as vezes que
se conversava sobre isso na escola, eu dizia com
ironia:
— Puro emocionalismo de massa!
Chegou a época de nossa "confirmação" na
igreja. Eu estava levando tudo muito a sério, mas
sentia que os outros só estavam interessados nas
roupas novas e no "chá de confirmação", que teríamos
depois da cerimônia. Meu medo era que o ministro
nos perguntasse, individualmente, em que críamos.
Mas ele não o fez. Contudo, resolvi fazer-lhe uma
pergunta.
— Em que devo pensar, no momento em que o
Bispo impuser as mãos sobre mim?
— Ah, bem... é... ore! disse ele afinal.
Eu e Gilly fomos até a frente e nos ajoelhamos,
e o Bispo impôs as mãos sobre nós. Só me recordo de
que, ao voltar para meu lugar, estava sentindo uma
grande alegria. Minha vontade era rir de felicidade.
Que atitude mais imprópria! Afinal, era um culto de
confirmação espiritual, e aquele era o momento mais
solene. O riso seria depois, na hora do chá. Eu tinha
pensado antes que gostaria de me comportar de
maneira bastante reverente e elegante nesse culto, e
não parecia haver nenhuma associação entre ele e
aquela alegria tão despropositada. Eu estava entre-
gando minha vida a Deus, e não esperava receber
nada em troca.
A primeira coisa que fiz depois disso foi pegar
a lista telefônica e procurar endereços de missões.
— Desejo ser missionária, escrevi para elas, e
creio que deveria começar a preparar-me desde já.
Quais os cursos que devo fazer?
Em resposta, eles me mandaram dizer que
haviam colocado meu nome no seu rol de associados
jovens.
Nas férias, geralmente, eu trabalhava na fábrica
de papai, ou então dava aulas particulares, ou funcio-
nava como "carteiro" para o Correio, na época do
Natal. Já me considerava uma pessoa integrada à
sociedade.
Depois, fui para o Real Conservatório de
Música, onde descobri que os músicos achavam que o
amor era o grande inspirador da música, e tive muito
trabalho para me livrar de um pistonista.
Vez por outra, eu passava pela sala da União
Cristã e via lá o quadro de avisos. Sentia um aperto
na consciência. Mas aqueles jovens ali me pareciam
tão desinteressantes e sem graça, e, além disso, na sua
maioria, eram organistas. Na cantina da escola, assen-
tavam-se sempre juntos, parecendo muito santos; não
me atraíam em nada. Não sabia sobre o que conver-
savam e nem me interessava saber. Davam a im-
pressão de serem muito solenes e tristes, e embora me
garantissem que minha vida mudaria depois que eu
viesse a "conhecer Jesus", eu não queria mudar para
ficar igual a eles.
Nesse tempo, eu gostava de freqüentar
festinhas, mas a principal forma de divertimento ali
ou era imoral ou desinteressante. Contudo, eu sempre
ia esperando encontrar ali o homem dos meus
sonhos. Foi só depois de muito tempo que
compreendi que ele nunca poderia estar presente
numa daquelas festas.
Certo dia, eu estava no trem, voltando da
escola para casa, quando encontrei duas ex-colegas de
escola. Elas me convidaram para ir a uma reunião em
uma casa, onde um pregador maravilhoso faria
palestras sobre a Bíblia. E eu fui. Ele era realmente
fabuloso. Mas todas as outras pessoas também o
eram. E o que mais me impressionou foi que eram
todos gente normal, como eu. As moças usavam
maquilagem. Os rapazes conversavam sobre corrida
de automóvel — no entanto estavam ali porque
desejavam estudar a Bíblia. Naquele ambiente foi
muito fácil falar sobre Deus.
Contudo, eu ainda ficava incomodada quando
ouvia falar em céu e inferno. Mas o que mais me
transtornava era a idéia de que ninguém podia chegar
a Deus, a não ser por intermédio de Jesus. Compreen-
di que ou eu tinha que aceitar tudo que Jesus dissera
a respeito de si próprio, ou abandonar de vez a fé
cristã. E não foi sem relutância que orei a ele dizendo
que acreditava em tudo que ele dissera. E assim me
converti.
Passei a ter uma vida ainda mais cheia do que
antes. Pouco depois disso, um homem me perguntou
se eu acreditava em Deus.
— Não, respondi. Eu o conheço. É diferente.
Tenho paz e sei para onde estou indo.
Mas essa nova vida também me trouxe alguns
problemas. Certo dia, após o estudo bíblico, as moças
tiveram um momento de oração. Abri os olhos para
dar uma espiada. Sorriam parecendo muito felizes.
Fiquei abismada, pois se críamos que iríamos para o
céu por causa de Jesus, a recíproca também era
verdadeira — quem não cresse nele não iria. "Como
essas pessoas podem ficar sentadas aí sabendo
disso?" pensei. "E as pessoas que ainda não ouviram
as boas-novas?"
Em conseqüência disso, passei a tomar parte
numa cena que teria abominado, antes de minha
conversão. Estava tocando piano numa reunião de
jovens evangélicos em Waddon, cantando hinos sobre
a salvação. Foi aí que tive certeza de que minha vida
havia-se modificado mesmo.
Depois que me formei, comecei a dar aulas de
música. Mas eu queria dedicar toda a minha vida a
uma obra qualquer, em algum lugar. E não havia
nada que me impedisse de fazê-lo. Voltou-me a idéia
de ser missionária. '
Então escrevi para missões, escolas e
companhias radiofónicas da Africa. E todos
responderam da mesma forma — não queriam meus
préstimos.
— Ainda não podemos dar-nos o luxo de ter
músicos por aqui, diziam.
Não me deixei abater, e tratei de pedir
conselhos às pessoas que melhor pudessem me
orientar.
— O que você acha que devo fazer de minha
vida? indagava.
— Já orou pedindo a orientação de Deus?
replicavam.
Já havia orado, mas Deus ainda não tinha me
dado uma resposta clara. A Bíblia ensinava que eu
deveria crer e ele me orientaria. Uma noite, sonhei
que nossa família estava reunida à mesa da sala de
jantar, olhando um mapa colorido da Africa. Entre os
diversos países daquele continente havia um que
estava colorido de cor-de-rosa. Inclinei-me mais para
ver qual era. Estava escrito "Hong Kong".
Quando acordei, escrevi para o governo de
Hong Kong explicando que era professora de música,
formada, e gostaria de lecionar nesse país.
Responderam dizendo que não havia vagas para
músicos. Recorri então à minha sociedade
missionária. Impossível, responderam. Não
aceitavam candidatos a missionário com menos de
vinte e cinco anos. Eu teria que aguardar um pouco
mais.
Ao que parecia, havia interpretado
erradamente o meu sonho.
Certa vez fui orar em uma pequena igreja de
um povoado, um lugar muito calmo. Ali tive uma
visão de uma mulher de braços estendidos, como se
estivesse implorando ajuda. Fiquei a me indagar o
que ela queria. Parecia desejar alguma coisa
desesperadamente. Seria auxílios do Fundo Cristão?
Depois, foram surgindo umas palavras que iam
passando à minha frente, como se fossem a ficha
técnica de um programa de televisão: "O que você pode
nos dar?" O que, em verdade, eu poderia dar a ela? Se
fosse missionária, o que iria dar às pessoas? Daria o
que aprendera em meus estudos? Deveria talvez
atuar como intermediária para conseguir-lhes
alimentos, dinheiro ou roupas? Se eu lhes desse
apenas essas coisas, quando saísse de lá, voltariam a
ter fome. Mas a mulher da visão estava com fome de
um alimento que ela não conhecia.
Ocorreu-me, então, que o de que ela precisava
era o amor de Jesus. Se ela o recebesse, quando eu
saísse de lá, ela ainda estaria satisfeita, e poderia até
transmiti-lo a outros. Finalmente sabia o que tinha a
fazer — só não sabia onde.
Pouco depois disso, encontrei um amigo que
morava em West Croydon, que sabia que eu estava
orando sobre meu futuro.
— Já recebeu a resposta? indagou.
— Não, respondi.
— Gostaria de assistir às nossas reuniões? inda-
gou. Lá estamos sempre recebendo respostas.
Será que aquela gente de West Croydon
pensava que tinha uma espécie de monopólio de
Deus? Fiquei curiosa para saber o que acontecia nas
reuniões.
— Logo que cheguei, alguém me disse que não
ficasse espantada se acontecesse algo de extraordiná-
rio. Sentei-me perto da porta. Ao que parecia, iriam
exercitar os dons espirituais, e eu queria ter facilidade
de escapulir, caso fosse necessário.
Não estava muito certa sobre o que iria haver
ali. Pensava que talvez alguém fosse profetizar em
voz alta. Mas a reunião foi muito ordeira e calma,
com orações normais e os hinos de sempre. Um ou
dois dos presentes realmente falaram numa língua
que eu não compreendia, mas até certo momento não
houve nenhuma profecia estrondosa, nem voz
estridente de Deus falando comigo.
Mas depois ela veio.
Uma pessoa começou a falar em voz tranqüila,
e logo tive plena certeza de que aquilo era para mim.
"Vá. Confie em mim e eu a guiarei. Eu a
instruirei sobre o caminho em que deve andar. Eu a
guiarei com meus olhos."
Tive certeza de que Deus estava com minha
vida em suas mãos, e que muito breve iria conduzir-
me a algum lugar.
Não havia dúvida de que o povo de West
Croydon recebia respostas de Deus. Voltei para casa,
e pus-me a aguardar maiores orientações. Ainda não
sabia para onde deveria ir. Dei aviso prévio em todos
os empregos, de modo que estivesse livre para partir
logo após o encerramento das aulas.
Durante os feriados da Páscoa, trabalhei
durante uma semana na igreja de Richard Thompson.
Ele me conhecia havia bastante tempo, e eu sentia que
poderia ajudar-me. Disse-lhe que eu e Deus nos
achávamos numa encruzilhada. Ele me ordenara
claramente que fosse, mas não me dissera para onde.
— Se Deus está ordenando que và, é melhor
você ir, replicou ele.
— Mas como, se não sei para onde ir. Todos os
meus pedidos de trabalho estão sendo rejeitados.
— Bem, se você já tentou todas as formas
convencionais de trabalho missionário e Deus
continua dizendo para você ir, é melhor você começar
a mexer-se. Se já tivesse um emprego, a passagem, o
lugar para ficar, a aposentadoria e pensão, não
precisaria confiar nele, continuou Richard. Desse
modo, qualquer um pode ser missionário. Se eu fosse
você, compraria passagem num navio com destino ao
ponto mais distante possível, embarcaria nele, e
depois iria orando todo o tempo, perguntando a Deus
onde deveria descer.
Depois de vários meses, era a primeira vez que
eu recebia uma resposta definida.
— É uma idéia maravilhosa, respondi. Mas me
parece errada, pois eu adoraria fazer isso.
Eu ainda pensava que tudo que o crente fizesse
tinha que implicar em sofrimento, e que não podia ter
nenhuma satisfação em sua fé.
Mas Richard afirmou que esse plano era
bíblico. Abrão, por exemplo, deixara sua terra e,
obedecendo a uma ordem de Deus, seguira para a
terra prometida sem saber para onde ia, pois confiava
em Deus.
— Não há o que temer, se você se colocar
inteiramente nas mãos de Deus, disse Richard com
muita seriedade. Se ele não quiser que você tome esse
navio, ele a deterá, ou poderá levar a embarcação
para qualquer lugar do mundo.
A idéia me pareceu fascinante.
O conselho de Richard era um pouco incomum,
mas muito sábio. Em nenhum momento, ele me deu a
impressão de que eu entraria no navio como uma
pessoa comum, e sairia dele transformada em missio-
nária, pronta para trabalhar. O que eu tinha de fazer
era simplesmente seguir a Deus, aonde ele me man-
dasse. Assim compreendi que não tinha nada a temer
nessa aventura.
Então fiz o que ele dissera. Procurei o navio
mais barato, com o percurso mais longo possível, que
passava por muitos países. Ia da França ao Japão.
Comprei a passagem, e tudo estava resolvido.
Naturalmente, eu teria que enfrentar meus pais
e amigos. Alguns se mostraram descrentes. Meu pai,
com muito bom-senso, insistia em que eu pensasse
muito, em minha "viagem de canoa para a China".
Meus pais estavam satisfeitos com a minha ida, mas
um se preocupava com o outro. Orei pelo problema, e
uma noite escutei os dois discutindo, cada um tentan-
do convencer o outro de que estava tudo certo.
O pessoal da minha sociedade missionária já
não se mostrou tão entusiasmado.
— Que conselho mais irresponsável para um
pastor dar a uma jovem, disseram. E suponhamos
que não tenha sido o Espírito Santo quem ditou as
palavras para Richard Thompson?
O dia em que parti foi um desses dias em que
tudo dá errado. O táxi que havíamos contratado para
nos levar a Londres apareceu com uma hora de
atraso. Mas afinal vi-me acomodada no vagão do
trem com minha bagagem. Richard Thompson surgiu
correndo pela plataforma, gritando:
— Glória a Deus!
E daí a pouco o trem arrancou.
O agente da imigração voltou-se para mim
muito transtornado. Por um instante pensei que eu
tinha vindo de tão longe até a Ásia, apenas para ser
repatriada. Mas de repente lembrei-me do texto que
lera pela manhã: "Eis que nas palmas das minhas
mãos te gravei." Se meu nome estava gravado ali,
então Deus sabia tudo que me dizia respeito.
— Espere um pouco, disse eu, lembrando-me
repentinamente de um afilhado de minha mãe. Eu
conheço uma pessoa aqui. Ele é da polícia.
O resultado foi dramático. Naquela época,
1966, a polícia era tida em alta conta, e qualquer um
que tivesse um conhecido na força policial,
obviamente era uma pessoa direita.
Devolveram-me o passaporte resmungando
que eu poderia desembarcar, sob a condição de que
deveria procurar emprego imediatamente. Na
opinião deles, meu dinheiro não daria nem para três
dias de estada em Hong Kong.
3
Uma Cidade Chamada Trevas
A Cidade Murada é guardada dia e noite,
continuamente, por um exército de vigias. Assim que
um estranho qualquer se aproxima, os vigias vão
passando a notícia de boca em boca. Aqueles rapazes
saem correndo por entre barracas de lanche, entrando
e saindo por portas, e atravessando ruelas estreitas.
As verdadeiras atividades da cidade ficam
completamente camufladas para um forasteiro.
Portas se fecham, janelas são cerradas e a queima de
incenso disfarça o acre odor do ópio.
Um dos nomes chineses dados à Cidade
Murada é "Hak Nam", que significa "trevas". E
realmente trata-se de um lugar de trevas horríveis,
tanto físicas quanto espirituais. Mas quando se
conhecem os homens e mulheres que vivem e sofrem
em tal lugar, podemos ficar condoídos, cheios de
compaixão.
A Sr.a
Donnithorne me convidara para visitar o
jardim da infância e a igrejinha que organizara ali,
mas não me havia preparado devidamente para o que
iria ver. Pegamos um carro até a rua Tung Tau
Chuen, situada nos arredores da cidade. É a rua dos
dentistas clandestinos, que exercem seu trabalho ile-
galmente, pois dentistas práticos não podem operar
em Hong Kong.
Logo atrás desses bizarros cômodos erguiam-se
os precários arranha-céus da Cidade Murada.
Passamos apertadamente por um vão entre duas das
lojas de dentistas e pusemo-nos a caminhar por um
beco escorregadio. Nunca me esquecerei do mau
cheiro e da escuridão reinante. Era um cheiro fétido
de comida azeda e de excremento, misturado ao de
lixo e de vísceras de animais. Fomos andando por
entre as casas, e a parte superior delas se projetava
sobre a rua, formando uma espécie de arco sobre o
beco. Parecia-me estar caminhando por um túnel
subterrâneo.
A medida que avançávamos, minha amiga ia
comentando algumas coisas: à nossa direita uma in-
dústria de flores de plástico; à esquerda, uma velha
prostituta, que era velha e feia demais para conseguir
fregueses. Então ela contratava meninas prostitutas
para trabalharem para ela. E essas tinham muitos
clientes. Nesse lugar depravado, a posse de uma
criança prostituta era considerada apenas como uma
excelente fonte de renda. "Tia Donnie" avisou-me que
mantivesse o rosto voltado para o chão, caso alguém
resolvesse esvaziar na rua seu urinol, no momento
em que passávamos embaixo. Depois vinha o cinema
de filmes pornográficos, uma espécie de pavilhão,
inteiramente lotado.
Mas havia um comércio normal também.
Vimos homens carregando na cabeça latas de
concreto re-cém-misturado. Mulheres, tendo nas
mãos imensas sacolas cheias de flores artificiais, iam
saindo das pequeninas saletas onde eram fabricadas.
Ali não se observava o "Dia do Descanso". Cinco
feriados ao ano eram mais que suficientes. Para um
chinês, é de suprema importância que os filhos
trabalhem para os pais, muitas horas por dia.
Como pode existir um lugar destes bem no
meio de Hong Kong, a Colônia da Coroa Britânica?
Há cerca de oitenta anos, quando a Inglaterra se
apossou da ilha chinesa de Hong Kong, da Península
de Kowloon e dos territórios contíguos a ela, foi feita
uma exceção. A velha cidade murada de Kowloon
deveria permanecer sob a jurisdição da China, com
seu mandarim, sujeita às leis chinesas. Mais tarde o
mandarim morreu, e seu cargo nunca foi ocupado,
nem por outro chinês nem por um inglês, e assim a
desordem passou a reinar na Cidade Murada, onde
prevalece até hoje. Ela se tornou um paraíso para o
contrabando do ouro, antros de jogatina ilegal e todo
o tipo de vícios. O desentendimento com relação à
sua posse significava que a polícia não podia impor a
lei e a ordem dentro dela. Quando querem procurar
criminosos ali, entram em grupos grandes.
A cidade tem uma população muito grande,
mas é pequena. Em apenas seis acres de terra, vivem
trinta mil pessoas, ou o dobro. As condições
habitacionais são apavorantes. Não existem leis
regulamentando a construção das casas; por isso as
ruas se acham "entulhadas" de prédios de
apartamento, situados em ângulos os mais loucos,
sem água, luz ou esgoto. Excrementos são atirados
nas ruas, que exalam constante mau cheiro. No andar
térreo, existem apenas dois banheiros para as trinta
mil pessoas. E esses dois não passam de buracos
feitos no chão sobre fossas já transbordantes. Um é
para as mulheres e o outro para os homens.
Seria muito improvável que num lugar como a
Cidade Murada houvesse escolas e igrejas. Mas a Sr.a
Donnithorne tinha conseguido abrir uma escolinha
primária. Os professores não eram formados, mas
haviam feito o curso secundário. Era uma escola
pequena, com várias centenas de alunos. No primeiro
dia em que fui visitar o local, Tia Donnie pediu-me
que lecionasse nela. Antes de pensar duas vezes
repliquei:
— Pois não!
E sem que soubesse claramente em que estava
me metendo, concordei em dirigir a bandinha de
percussão, ensinar canto e conversação em inglês, três
vezes por semana.
Pelo sistema chinês, aprende-se tudo de cor. E
todos os meses se fazem provas, bem como ao fim do
semestre e do ano. A criança reprovada nos exames
finais tinha que repetir todo o ano escolar.
As aulas da bandinha e de canto não apresenta-
vam muita dificuldade para mim, mesmo levando-se
em conta que não conversava muito com os alunos,
mas, quanto às aulas de conversação, meu fracasso foi
total.
Tentei vitalizar mais as aulas dramatizando as
histórias, mas eles não corresponderam. Todas as
vezes que tentava fazer isso aconteciam verdadeiras
guerras na sala de aula. A liberdade que eu tentava
aplicar, em poucos minutos transformava-se em anar-
quia.
Uma vez por semana, à noite, havia um culto
numa das salas de aula. E a Sr.*a
Poon — nome que,
orgulhosamente, me deram em chinês — tocava o
harmónio.
A maioria das pessoas que vinham era
constituída de mulheres mais velhas, algumas
carregando crianças presas às costas. Vim a descobrir
depois que muitas delas, sendo analfabetas, vinham à
igreja para ter aula de leitura. Começavam cantando
entusiasticamente, em voz bem alta. Em seguida, a
instrutora bíblica expunha os ensinamentos em
cantonês. Nessa época, eu não entendia uma palavra
do que era dito, mas sentia que participava do culto.
Na primeira noite em que lá estive, uma
mulher me captou a atenção, naquele grupo de
chineses. Era uma velha verdureira: tinha o rosto
muito sulcado de rugas, e apenas dois dentes, que
estavam sempre em evidência, pois a mulher sorria
constantemente. Ela se aproximou de mim e puxou-
me pela manga, com veemência. Ficou falando e
falando, sorrindo e puxando a manga. Pedi a alguém
que interpretasse para mim o que ela estava dizendo.
— Até a semana que vem! Até a semana que
vem!
Tive vontade de dizer a ela que não poderia ir
todas as semanas, pois morava muito longe, e quando
voltava para casa já era muito tarde, e eu tinha que
me levantar cedo para dar aula. Mas senti que não
conseguiria explicar-lhe tudo isso. Ela só
compreenderia que eu estaria ali ou não estaria. Então
resolvi ir ao culto todos os dias, só por causa dela.
Aquela altura, eu já tinha um emprego fixo:
dava aulas numa escola primária, pela manhã.
Lecionei ali durante seis meses. Além disso, auxiliava
Tia Donnie na escolinha dela, três vezes por semana,
à tarde, tocava nos cultos de domingo, e preparava
programas musicais em prol de várias instituições de
caridade. Isso tomava todo o meu tempo.
Na segunda vez que fui à Cidade Murada, tive
uma sensação maravilhosa: aquela vibração interior
que se tem no dia do aniversário. E comecei a me
indagar por que me sentia tão feliz. E na outra vez
que fui ali, experimentei exatamente a mesma coisa.
Isso me parecia um pouco descabido, num lugar tão
revoltante como aquele. E, no entanto, quase todas as
vezes em que me encontrava nesse reduto de
marginalidade, nos doze anos que se seguiram, sentia
o mesmo gozo. Eu já tivera um vislumbre dessa
alegria no dia da minha "confirmação", e depois
quando recebera a Jesus em minha vida — mas
experimentar o contentamento espiritual nesse lugar
profano?
— Aquele ali é viciado, disse-me Tia Donnie
certa manhã, quando nos dirigíamos para a escola.
Nessa ocasião, eu ainda não sabia direito o que
significava ser viciado. Ele iria nos agredir, roubar-
nos o relógio ou ter um acesso? Era um homem de
aspecto patético, que, com movimentos lentos, catava
coisas num monte de lixo. Estava examinando os
detritos ali deixados, um por um, para ver se havia
algum objeto que pudesse ser de valor para ele. Dava
a impressão de estar muito doente, o rosto muito
pálido, e parecia ter setenta anos e não trinta e cinco.
Usava uma camiseta de algodão bastante suja e
sandálias de plástico, já bem gastas. A maioria dos
chineses anda sempre muito limpa, mas o Sr. Fung
estava imundo. Seus dentes eram pretos, quebrados.
O cabelo cortado rente indicava que acabara de sair
da prisão. Mas, para ele, a cadeia era apenas um lugar
para dormir e comer com mais regularidade.
Mas, na verdade, cama e comida não era o que
importava para ele. Fung vivia para "perseguir o
dragão". Essa maneira chinesa de tomar droga tem
seu ritual próprio. O viciado chega a um local de
comércio de drogas, pega um pedaço de folha de
alumínio e coloca nela alguns grãozinhos de heroína.
Acende um paviozinho feito de papel enrolado e
coloca sob o alumínio, a fim de aquecer a droga. A
heroína vai-se derretendo lentamente,
transformando-se numa espécie de melaço escuro e
fumegante. Ele coloca na boca a parte externa de uma
caixa de fósforo para servir de funil, pelo qual ele irá
inalando a fumaça. Em seguida, põe-se a mover a
folha de alumínio, fazendo o filete de líquido grosso
escorrer de um lado para outro, acompanhando o
movimento da fumaça com a boca. Chamam a isso
"perseguir o dragão".
Pouco depois, fiquei sabendo que nem todos os
viciados tinham uma aparência como a do Sr. Fung.
Alguns deles estão sempre bem vestidos. Para estes, o
fato de se apresentarem bem é uma evidência de que
não se acham escravizados ao dragão. Como passara
a ir à cidade com freqüência, vi o Sr. Fung muitas
vezes. Comecei a me indagar se não deveria fazer
alguma coisa por ele e por outros iguais a ele.
A prostituição raramente era camuflada. A pri-
meira prostituta que vi ali chamou minha atenção por
estar usando batom e esmalte num tom vermelho
berrante. Ficava o dia inteiro agachada na rua, uma
rua tão estreita que o rego do esgoto passava perto de
seus pés. Rua abaixo havia outras delas, sentadas
sobre caixas de laranjas e uma delas tinha até uma
cadeira. Na sua maioria também eram viciadas em
drogas. As marcas escuras no dorso da mão
revelavam que injetavam heroína diretamente na
veia. Eu passava ali todos os dias e nunca saberia
dizer quando estavam acordadas ou dormindo.
Estavam sempre pendendo a cabeça, o branco dos
olhos amarelado pelo torpor da heroína.
Um dia tentei tocar na menorzinha. Aprendera
a "Jesus te ama", em chinês.
— Yeh sou ngoi nei, falei.
Mas ela se encolheu toda, fugindo ao meu
contato. Vendo a expressão de seu rosto, compreendi
subitamente que cometera um erro. Ela colocara uma
barreira entre nós, e eu não sabia o que fazer para
derrubá-la. A moça estava fortemente constrangida,
porque eu, uma jovem "limpa", cometera um engano
e tocara nela, uma suja.
Fui percebendo aos poucos que as mulheres
mais velhas se engajavam na obtenção de clientes.
Quando os homens saíam do cinema pornográfico, as
mama-sans quase os agarravam e puxavam para ali.
As vezes dava para ouvi-las dizer, empurrando-os
escada acima:
— Venha, ela é bem jovem, e é barato.
Naturalmente, as mocinhas não ficavam com o
dinheiro. A maioria das prostitutas era
controlada por quadrilhas, e os bordéis só podiam
funcionar com permissão da quadrilha, que
controlava a área em que se encontravam.
Havia duas mocinhas que eu via
ocasionalmente. Uma delas era aleijada e a outra
retardada. Ambas eram prisioneiras. Nunca saíam a
não ser acompanhadas por uma mama-san. Eram
visitadas por três clientes a hora. Nessa época uma
tinha treze e a outra quatorze anos. Mais tarde, vim a
saber, através de um membro da quadrilha, como
essas moças eram iniciadas nesse tipo de vida.
Os rapazes organizavam uma festinha e
convidavam mocinhas. Durante a festa, as jovens
eram seduzidas. Se resistissem, eram estrupadas. Via
de regra, cada membro da quadrilha pegava sua
menina e ficava com ela durante alguns dias. Depois
que percebia que ela já estava afeiçoada a ele e
acostumada com o sexo, ele a entregava a um bordel.
Outras mocinhas se prostituíam, porque seus
pais não tinham condições de sustentá-las, e as
vendiam para o comércio da prostituição, onde
permaneciam até se tornarem mais adultas. Depois
disso, muitas dessas antigas meninas-prostituas
fugiam de seus donos e se lançavam na carreira,
fazendo a única coisa que sabiam. Algumas dessas
crianças iniciavam este tipo de vida com nove anos de
idade.
Comecei a planejar um modo de alcançar essas
moças, que estavam sempre tão bem vigiadas. Afinal
tive que desistir disso e "arquivei" mentalmente o
problema, mas tinha esperanças de que um dia
pudesse encontrar um homem que se interessasse por
esse trabalho, e pudesse pagar a quantia necessária
para uma hora com elas, mas que, nesse tempo,
pregasse o evangelho para a jovem. Talvez juntos, eu
e ele, pudéssemos conceber um plano de fuga para
elas, se alguma quisesse abandonar esse tipo de vida.
4
O Clubinho
Às vezes penso que a verdadeira razão por que
criei o clubinho foi Chan Wo Sai. Era um rapazinho
feioso, de quinze anos, e com tantos problemas,
quantos pode ter qualquer outra pessoa. Conheci-o
quando dava aulas de inglês e canto na Escola
Primária Oiwah, três tardes por semana. Estava ensi-
nando uma musiquinha muito simples, sem arroubo
nenhum, e, no entanto, lá estava Chan Wo Sai
parecendo realmente empolgado com uma
cançãozinha infantil. Girava os olhos e estalava os
dedos. Depois levantou-se e pôs-se a dançar pela sala,
vindo em minha direção, remexendo os quadris com
um jeito bem sensual. Mandei que voltasse para o
lugar, e passei a ensinar outra música. Após a aula,
procurei descobrir as origens dele.
Chan Wo Sai nascera ali mesmo, na Cidade
Murada. A mãe era prostituta e o pai, um bêbedo.
Viviam num pardieiro, numa casa que havia desaba-
do. Toda a família ocupava um quartinho minúsculo.
Na casa ao lado, moravam algumas prostitutas.
Desde que se entendeu por gente, o garoto passou a
conviver com esses fatos; eram parte de seu
quotidiano. Seus horizontes eram limitados pelo
bordel ao lado, os antros de jogo um pouco abaixo e
os salões de ópio depois desses. Na Cidade Murada
não havia nada que oferecesse a alguém uma
atividade mais construtiva.
Então procurei conhecê-lo e ajudá-lo a
melhorar de vida.
Isso seria um pouco difícil, já que eu não falava
uma só palavra de cantonês. E para dificultar ainda
mais as coisas, ele tinha uma deficiência de fala que
embaraçava ainda mais nossa conversa. Nosso único
ponto em comum era uma espécie de tambor que eu
havia dado a ele. Consistia numa membrana de
borracha presa numa armação de madeira, na qual se
batia com baquetas; uma bateria surda. Ele tinha que
treinar naquilo, mas não tinha o menor senso de
ritmo. Mas ele se mostrava muito satisfeito, pois era a
primeira vez na vida que alguém demonstrava algum
interesse por ele.
A medida que os dias iam passando, percebi
que estava constantemente pensando nele, e isso me
deixou um pouco alarmada. Minha mentalidade
inglesa me levava a crer que qualquer amor por um
rapaz tinha que ser de natureza romântica, e, sendo
eu crente, isso teria que terminar em casamento. Mas,
naquele caso, obviamente, isso era impossível, e até
mesmo ridículo. Meu bom-senso dizia que ele era um
rapaz feioso, com uma formação das piores possíveis.
Mas eu realmente o amava e orava por ele constan-
temente. Cheguei a um ponto em que estaria disposta
a dar minha vida por ele.
Algum tempo depois, vim a compreender o
que se passava comigo, e fiquei bastante surpresa. Era
como se Deus tivesse me concedido um amor especial
por ele, que eu deveria demonstrar, embora não se
tratasse de um sentimento que devesse ou pudesse
ser retribuído. Era um amor que tinha por objetivo o
bem dele, e diferia bastante do amor que eu sentira
por outras pessoas, para o qual sempre tinha desejado
alguma forma de retribuição.
Dentre os vários grupos humanos necessitados
que pululavam a Cidade Murada, o mais desatendido
era o dos adolescentes. As crianças menores, pelo
menos, tinham a chance de freqüentar uma escola
primária. Mas os adolescentes não tinham nada. Era
praticamente impossível estudar num ginásio. E eles
tinham de trabalhar nas indústrias de plástico, onde
ganhavam pouquíssimo.
Muitos rapazinhos, e até mocinhas, saíam de
casa e iam viver com outros jovens em cômodos
miseráveis. Pouco depois, não tendo nenhuma
atividade, caíam na senda do crime. Muitas vezes, as
quadrilhas é que lhes ofereciam a única forma de
ocupação possível.
Durante o verão de 1967, toda a China fora con-
vulsionada pelas atividades da Guarda Vermelha.
Aquela "epidemia" chegou também a Hong Kong.
Houve tumultos por toda a colônia. Vim a descobrir,
porém, que alguns rapazes da Cidade Murada esta-
vam sendo pagos para participarem do tumulto. Per-
cebi então que poderia convencê-los a fazer um
piquenique. Então, num dia úmido de junho, disse a
Tia Donnie em tom bastante pomposo:
— Acho que Deus está querendo que eu
organize um clubinho para jovens.
Eu imaginava o trabalho sendo realizado com o
auxílio de uma equipe de obreiros cristãos da ilha de
Hong Kong, todos escolhidos a dedo, que iriam avan-
çar sobre a cidade com um programa de ação mu.'to
bem planejado, enquanto eu ficava sentada, assistin-
do e aplaudindo.
Meu plano era termos um salão que abrisse
todas as noites, e aos sábados e domingos. Seria um
lugar onde os rapazes pudessem jogar tênis de mesa e
engajar-se em outras atividades saudáveis, mas igual-
mente um lugar onde ouvissem falar de Jesus. Mas
Tia Donnie tinha uma atitude mais prática.
— Ótimo! Há anos estou orando por isso.
Quando pretende começar? A semana que vem?
Começamos uma semana depois. Ainda dava
para contar nos dedos as palavras de cantonês que eu
sabia. Não contava com minha equipe escolhida a
dedo e não tínhamos um local para nos reunirmos.
Mas passamos a usar uma sala da escola nos sábados
à tarde. E Gordon Siu; um jovem chinês que eu
conhecera na Orquestra Juvenil, veio em meu auxílio
como intérprete, tornando-se um esteio para mim. Ele
me ajudava a alugar ônibus, acompanhava-nos nos
piqueniques, ou ia patinar conosco. Pouco depois,
começaram as férias, e, ao pensar que os rapazinhos
poderiam envolver-se mais nos tumultos de rua,
resolvi ampliar ainda mais nossas atividades.
De reuniões apenas aos sábados, passamos a
ter um completo programa de verão, com
piqueniques, caminhadas a pé e visitas às plantações
do refloresta-mento. E nos anos que se seguiram
realizamos o mesmo programa em julho e agosto.
Os primeiros a aparecer foram os adolescentes
de treze e quatorze anos, que traziam também seus
amigos de fora. Todos sabiam que eu estava ali
basicamente porque era cristã, e que em toda a
programação sempre haveria uma pequena palestra
no início. Eles não gostavam muito de ouvir falar de
Jesus. Nem ao menos sabiam direito quem ele era.
Alguns jovens me disseram que não poderiam ir ao
clubinho.
— Nós bebemos e fumamos, vamos ao cinema
e jogamos, e sabemos que os crentes não fazem essas
coisas.
Pouco depois, Chan Wo Sai largou a escola.
Estando com quinze anos, era um dos mais velhos
alunos do quarto ano. Achava-se com quatro anos de
atraso, pelo menos, em seus estudos. Ele resolvera
não concluir o ano. Fora aberto um novo cinema, e ele
conseguira um emprego de vender ingressos.
Para a inexperiente professora inglesa, largar a
escola primária era uma coisa terrível. Durante todo o
período das férias, tentei persuadir o garoto a voltar.
Por fim, ele resolveu ir conversar com os professores,
mas eles se recusaram a recebê-lo.
— Olha, Jackie, disse um deles, ficamos muito
satisfeitos quando ele decidiu sair, porque não conse-
guíamos controlá-lo mais. Pois que vá!
E era uma escola missionária! Os professores
eram crentes, e eu imagina que, quando se reuniam
para orar, intercediam por alunos difíceis e
problemáticos como Chan Wo Sai.
Mas a verdade era que a maioria deles mal
havia completado o segundo grau. Diziam-se cristãos
apenas para conseguirem o emprego, e eram
incapazes de controlar quaisquer alunos, a não ser
que fossem bastante dóceis.
A única alternativa que restava a Sai era fazer
um curso profissionalizante, onde pudesse aprender
algum ofício. Viemos a descobrir, porém, que ele não
se qualificava para nenhum deles, ou porque já
passara da idade, ou porque não tinha terminado o
primário, ou porque não falava inglês. Todas as
portas se fechavam para Chan Wo Sai, embora ele
tivesse apenas quinze anos.
O que iria suceder-lhe? Parara de estudar e, ao
que parecia, a única perspectiva de vida para ele era
vender ingressos no cinema. Não havia nada mais
que eu pudesse fazer por ele, a não ser manter o
clubinho em atividade. Vários dos seus amigos que
paravam de estudar iam para as quadrilhas. Sentiam
que ali tinham uma função na vida. Tinham sua
posição certa e eram tratados como uma pessoa
importante. Encontravam ali até um pouco de carinho
e afeto, consideração e amizade, o que não achavam
em nenhuma outra parte. Tanto na igreja como na
escola, o sucesso nas provas era sinônimo de valor e
integridade. Mas nem nas quadrilhas nem em meu
clubinho, eles escutavam palavras de condenação ou
rejeição pelo fracasso.
O nosso Clubinho Jovem era realmente bem
diverso de tudo o mais que havia na Cidade Murada.
Ninguém obtinha lucros com ele; não era controlado
por chefes de quadrilhas. Tivemos de mudar várias
vezes, mas era sempre o mesmo. Um salão com
alguns joguinhos tais como mesa de pingue-pongue e
alvo para dardos, alguns bancos toscos e uma estante
com alguns livros evangélicos".
Outro rapaz que vim a conhecer bem naquela
época foi Nicholas. Tanto o pai como a mãe já tinham
sido processados por venda de drogas, e a família
toda vivia numa das piores casas que já vi. As duas
filhas mais velhas eram prostitutas. E todos moravam
em apenas um cômodo pequeno e malcheiroso.
Os membros da igreja não gostavam de
Nicholas, pois ele, do mesmo modo que Chan Wo Sai,
exercia uma influência negativa sobre os outros
alunos da escola. Naturalmente eles sabiam que suas
irmãs eram meretrizes e o pai viciado em ópio. Na
opinião deles, o fato de eu receber Nicholas em nosso
clubinho implicava em descrédito para o bom nome
da igreja cristã. Eu não devia nem ser vista em
companhia dele.
Eu sabia que o rapaz tinha má conduta e estava
sempre dando trabalho. Mas eu o amava, embora isso
fosse absurdo. Jesus viera ao mundo por causa de
pessoas iguais a ele, o que também não fazia muito
sentido.
Resolvi então fazer-me amiga dele e visitá-lo
seguidamente. Interessava-me bastante por ele.
Encontrava-o nos antros de droga, e, quando era
preso, acompanhava-o à delegacia, e ali orava por ele.
Mas nada disso o tocava para que se modificasse.
Vim a compreender depois que naquele lugar
de tamanhas trevas não havia a noção do conceito de
retidão. O crime, a mentira e a corrupção eram coisas
certas, desde que dessem lucro. Mas as pessoas que
assim pensavam assumiam uma atitude de moralida-
de em minha presença. E achavam que tal atitude era
correta, já que eu era representante da Igreja, do
Sistema.
— Nicholas é um menino terrível, dizia a mãe,
repreendendo-o bem na minha frente, e depois se
lamentava: não sei por que meus filhos são todos uns
perdidos.
E ela era uma pessoa que preparava os
saquinhos de heroína para vender aos viciados.
Tempos depois, uma das meninas mais novas,
Annie, também se tornou prostituta. Mas, afinal,
acabou fazendo um bom casamento. O noivo era for-
gei, mas também trabalhava para a polícia, fazendo a
arrecadação do dinheiro do suborno. Annie ficou
muito feliz de se casar com ele, pois o rapaz tinha seu
próprio carro. E sua mãe também ficou encantada.
Certo dia, quando eu caminhava pela rua, um
velho correu ao meu encontro. Tinha o rosto esquelé-
tico dos viciados em ópio, e estava furioso.
— Poon Siu Jeh, você tem que reclamar na
polícia. Era proprietário de um salão de consumo de
ópio, um homem muito importante na Cidade
Murada.
— E por que eu deveria reclamar? indaguei.
— Por que fecharam todas as salas de ópio,
disse ele muito encolerizado.
— Mas estou muito satisfeita de saber que
fecharam as salas de ópio, respondi. Por que deseja
que eu reclame?
— Porque deixaram as de heroína funcionando,
e pagamos a eles a mesma quantia que os outros. Isso
não é justo.
Não se tratava do que era certo e errado, mas
justo e injusto.
Joseph foi um dos primeiros presidentes do
clubinho. Não tinha nenhuma ligação clara com o
crime organizado, como Nicholas e Chan Wo Sai.
Quando ele estava com seis anos, seu pai casou-se de
novo; e como a madrasta não gostasse dos enteados,
não lhes dava o que comer. Então Joseph e sua irmã
Jenny tiveram que sair mendigando. Mas um pastor
de Novos Territórios os apanhou e enviou para a
escola da Tia Donnie. Depois de terminar o curso
primário, Joseph arranjou um quarto para morar e
pôs-se a trabalhar em serviços pesados, sempre que
conseguia algum. Pouco depois, sua irmã foi morar
com ele.
Depois, tipos como Nicholas começaram a fre-
qüentar seu cômodo, passando a noite ali, e seu
quartinho se tornou uma "incubadeira" de quadri-
lheiros. Passei a visitá-los com regularidade. A irmã
também estava correndo perigo moral. Aos quinze
anos era muito bonita, e estava-se deliciando com a
liberdade que tinha. Podia conversar à vontade com
os amigos do irmão. Senti que, se continuasse moran-
do com ele, ela iria fatalmente acabar tomando o
caminho inevitável. Não poderia abrigar a ambos em
minha casa, já que havia outra moça da Cidade
Murada, Rachel, morando comigo. Mas achei que
Jenny poderia vir. Convenci-a a sair de lá para ficar
conosco. Arranjei uma escola secundária para ela,
mas o desejo da moça era voltar para a Cidade
Murada, e durante o período em que esteve conosco,
causou-nos muitos problemas.
Outro rapaz que freqüentava assiduamente o
clubinho era Christopher, que morava num casebre.
Para se chegar lá, descia-se por uma ruela escura,
onde não penetrava a luz solar. Em determinado
ponto, havia alguns galinheiros feitos de engradado
de refrigerantes. Era ali. Subia-se uma escadinha de
madeira, e estava-se na casa dele. A porta era aberta
de baixo para cima, como um alçapão. Era apenas um
cômodo. Uma cortina servia de tapume para o canto
onde a família dormia. Nele havia apenas dois
beliches e todos dormiam naquelas duas camas, os
pais e seis filhos.
O resto do aposento estava ocupado por
imensas pilhas de artefatos de plástico, com os quais
a mãe dele trabalhava, ganhando mais ou menos um
dólar por dia. Todos os filhos tinham que ajudá-la. A
filha mais nova nem chegara a terminar a escola. Aos
treze anos fora trabalhar numa fábrica de artigos de
plástico. E todo o dinheiro que ganhava tinha que ser
entregue à mãe. E depois que chegava do serviço,
tinha que trabalhar mais, pregando lantejoulas em
roupas. Quando fazia uma blusa de frio, por
exemplo, ganhava mais três dólares, que,
naturalmente, seriam de sua mãe.
Assim Christopher começou a trabalhar, e seu
dinheiro também era entregue à mãe. Era uma tradi-
ção dos chineses, uma lei não escrita: os filhos tinham
que pagar aos pais pelo sustento deles recebido. A
ambição dos pais era aposentarem-se e serem susten-
tados pelos filhos. Os jovens chineses não tinham
nenhuma satisfação ao receberem seu pagamento,
pois nunca ficavam com ele. Os pais retinham tudo. A
mãe de Christopher foi assim ajuntando dinheiro e,
mais tarde, comprou um apartamento para si, fora da
Cidade Murada.
Muitos casais chineses têm família numerosa
por razões econômicas: para que fiquem ricos ao
envelhecer. Tive a impressão de que a afeição familiar
não se baseava em um amor mútuo, mas, sim, em
interesses econômicos.
Ah Lin, a irmã mais nova de Christopher, afinal
se rebelou contra aquela exploração. Conheceu em
sua fábrica um rapaz que gostava dela, mas a mãe
proibiu o namoro. Também não permitia que ela
freqüentasse o clubinho, pois as atividades dele eram,
em sua maior parte, recreativas. O divertimento, pura
e simplesmente, não deveria existir para ela. A
menina tinha que ficar em casa, e olhar os
irmãozinhos, ou então montar as peças dos objetos de
plástico, ou buscar água. Finalmente, a garota, com
quatorze anos, fugiu de casa e foi morar com o rapaz.
A mãe conseguiu pegá-la de volta e trancou-a em
casa. O que ela fizera significava não apenas
vergonha para a família, mas também um rombo nas
finanças dela. Sendo as meninas tratadas assim, como
se fossem bens particulares, não é de se estranhar que
caíssem na prostituição para se libertarem.
Minha tarefa era fazer o povo da Cidade
Murada entender quem fora Cristo. Se não
conseguiam compreender as palavras que
pregávamos sobre Jesus, então nós, os crentes,
tínhamos que demonstrar na prática quem ele era,
pelos nossos atos e conduta. Então iniciei o que eu
chamava de "andar a segunda milha". Parecia que
havia muitos cristãos que não se importavam de
andar a primeira milha; muitos que não se dariam ao
trabalho de andar duas e nenhum que quisesse andar
três. Aquele povo ali precisava que se andasse com
eles uma maratona.
Fui-me envolvendo cada vez mais com os
rapazes, seus familiares e seus problemas. Implicava
em viver diante deles de maneira prática, para que
vissem quem Jesus era, e o conhecessem. Um
exemplo desse tipo de conduta foi o que se deu,
quando um dos rapazes me pediu que ajudasse sua
irmã a conseguir matrícula numa escola secundária.
O processo normal era ficar na fila um dia inteiro,
apenas para pegar um formulário para fazer o exame
de admissão.
Aquela família esperava que eu simplesmente
fosse à diretora e lhe dissesse:
— Olhe, eu sou fulana de tal, conheço o Dr.
Sicrano. Será que poderiam admitir aqui essa
menina?
Mas não fiz isso. Entrei na fila, como todo
mundo, e eles ficaram muito espantados, pois quando
haviam pedido meu auxílio, não era isso que tinham
em mente.
Eu só podia dar esse tipo de ajuda durante as
férias, pois estava dando aulas de música em tempo
integral no Colégio Anglo-Chinês para meninas. Mas
durante muito tempo, muitas pessoas se agregaram a
mim simplesmente pensando que, se ficassem em
meu grupo, talvez conseguissem um certificado de
batismo ou um documento qualquer que lhes
possibilitasse emigrar para os Estados Unidos. Eram
os "crentes da sopa". Tratavam-me como haviam
tratado outros missionários, crendo que eu fosse uma
presa fácil. Estavam constantemente pedindo
dinheiro emprestado. E não acreditavam, quando eu
lhes dizia que não o tinha. Os diálogos eram quase
sempre mais ou menos assim:
— Poon Siu Jeh, estou sem emprego e meu
dinheiro acabou.
— Mas eu não tenho dinheiro.
— Ah, mas você deve ter sim. Você é muito
rica.
— Não; não tenho dinheiro nenhum.
— Tem, sim. Você tem uma igreja na América
que a sustenta.
— Não, não tenho igreja. E eu vim da
Inglaterra. Mas não sou sustentada por igreja
nenhuma.
— Ah, qualquer dia desses você pega um jato e
volta para sua terra.
— Não; não existe a menor probabilidade de
isso acontecer, pois não tenho dinheiro para a
passagem, respondia eu com toda a sinceridade.
— Então seus pais lhe mandam dinheiro.
— Meus pais também não têm muito dinheiro,
replicava.
Aquela altura, Ah Ping entrava na conversa.
Ele pensava um pouco mais que os outros, e seus
comentários eram sempre mais precisos.
— É, talvez você não tenha dinheiro mesmo,
mas sempre pode ir embora, se quiser. Nós não
podemos. Não temos para onde ir. Mas vocês, os
ocidentais, podem pegar o avião e ir embora, e depois
se esquecem completamente de nós.
— Não, Ah Ping. Não estou pensando em ir
embora e esquecer vocês.
Mas Ah Ping sabia falar, quando se
entusiasmava. E hoje ele iria dizer uma coisa que
todos eles pensavam.
— Vocês, os ocidentais, continuou ele, vêm
aqui e falam de Jesus para nós. Ficam aqui um ou
dois anos, para aplacarem a consciência, e depois vão
embora. Esse Jesus chama vocês de volta para fazer
outro trabalho, na sua pátria. É verdade que lá muitos
conseguem angariar bastante dinheiro para nós, po-
vos mais carentes. Mas continuam bem, morando em
belas casas, com geladeiras e empregados, enquanto
nós continuamos vivendo aqui. Mais cedo ou mais
tarde, você também irá embora.
Era um forte libelo contra aqueles evangelistas
que chegavam a Hong Kong, cantavam lindos hinos
sobre Jesus e depois pegavam o avião e iam embora.
— ótimo, dizia Ah Ping, ótimo para eles e para
nós também. Teríamos muito prazer em crer em
Jesus, se também pudéssemos pegar um avião e viajar
pelo mundo todo, como eles. É muito fácil para eles
cantar hinos que falam de amor, mas o que sabem a
nosso respeito? Nada; não sabem nada. E não nos
conquistam tampouco.
Houve ocasiões em que tentei conversar com os
guardas das salas de jogo, mas quando mencionava
que Jesus os amava, eles acenavam a cabeça afir-
mativamente.
— Ótimo! Muito bom! diziam. Mas isso não
significa nada para nós.
E não significava mesmo, pois a maioria nem
tinha idéia de quem era Jesus, e do que fosse amor. E
eu continuei a pregar, dizendo que Jesus poderia dar-
lhes uma nova vida, mas não pareciam entender
nada.
5
Luz nas Trevas
Jesus não apenas afirmou que era Deus, ele de-
monstrou isso. Fez os cegos recobrarem a visão, os
surdos, a audição, e os mortos voltarem à vida.
Alguns cristãos diziam que estas coisas ainda
aconteciam em nossos dias, mas eu não as estava
vendo.
Meus amigos missionários não podiam
auxiliar-me muito nessa questão. Muitos deles tinham
vivido sempre na China e se sentiam meio
desarvorados. Alguns ainda tinham certos ranços
culturais, e começaram a influenciar-me a tal ponto,
que passei a me preocupar com detalhes tais como se
devia usar vestidos sem mangas ou se devia ir nadar
aos domingos. Eu não pertencia a nenhuma missão, e,
na verdade, estava bem livre de imposições. Contudo,
estava me sentindo tolhida, infrutífera.
Certo dia fui tocar harmónio na Capela. Lá
conheci um casal chinês que iria dirigir o culto, e
percebi neles uma vitalidade e um poder que eu
desconhecia. Imediatamente, tive vontade de saber
por que eram tão diferentes. Não falavam inglês
muito bem, e eu mal falava chinês.
— Você não possui o Espírito Santo, disseram.
Ligeiramente indignada repliquei que o tinha
sim.
"É lógico que possuo o Espírito", pensei comigo
mesma. "Se não o tivesse não poderia crer em Jesus."
Mas estava claro que aquele casal tinha algo
que eu não tinha, e eu o reconhecera, apesar de não
ter entendido bem a mensagem. Eles denominavam-
no possuir o Espírito Santo, ao passo que eu preferia
outra expressão. Mas, se Deus tinha outra bênção
para mim, gostaria de recebê-la, e deixaria para
depois a nomenclatura teológica. Então combinei
visita-los em seu apartamento no dia seguinte.
O apartamento deles, como milhares de outros
da cidade, tinha apenas um cômodo. Havia ali uma
mesa sobre a qual se viam um prato com laranjas e
outro com pedaços de flanela molhada. As laranjas
eram usadas tradicionalmente pelos chineses para
qualquer comemoração, e os pedaços de flanela eram
para quando eu chorasse.
Senti meu coração pulsar com força, pois não
sabia exatamente o que iria acontecer ali. Então me
sentei, e eles impuseram as mãos sobre minha cabeça
e começaram a falar repetidamente:
— Agora comece a falar, agora comece a falar,
agora comece a falar...
Mas não aconteceu nada. No grupo de West
Croydon havia algumas pessoas que falavam línguas
estranhas, mas ninguém gostava de conversar muito
sobre esse dom. Parecia-me maravilhoso ter uma
nova língua na qual pudesse expressar a Deus todos
os pensamentos, mas fechei a boca firmemente. Se
Deus quisesse dar-me o dom, ele teria que fazê-lo, e
não eu.
Contudo, estava-me sentindo cada vez mais
envergonhada, além de um grande desconforto e
muito calor. Eles iriam ficar muito desapontados, se
nada acontecesse. Afinal, não consegui me conter
mais, e abri a boca para dizer: "Ajudem-me!" Foi aí
que começou. Logo que fiz aquele esforço consciente
para abrir a boca, percebi que estava falando
fluentemente uma língua que nunca aprendera. Era
uma língua muito bela, bem articulada, suave e
coerente. Não tive a menor dúvida de que tinha
recebido o sinal. Mas não me sobreveio nenhuma
alegria esfuziante. Foi totalmente desprovido de
emoção.
O casal chinês ficou encantado ao ver que eu
falara em línguas, embora um pouco surpreso de não
me ver chorar. Mas eles choraram um pouquinho.
Ainda me sentia um pouco constrangida, e saí assim
que pude. Quando estava à porta, disseram-me:
— Agora você pode esperar que os outros dons
do Espírito vão aparecer também.
Mas não entendi bem o que quiseram dizer. Na
semana seguinte, todos os dias, ficava esperando que
o dom de cura ou o de profecia surgissem de repente.
Eram os dois únicos dons do Espírito de que eu
ouvira falar. Eu não tinha dúvida nenhuma acerca da
validade e do uso deles, mas não sabia quando uma
pessoa reconhecia que os possuía.
Outra coisa que me intrigava um pouco era o
fato de não estar dominada pela emoção. Lera livros
que haviam-me deixado com a impressão de que
aquela experiência iria fazer-me andar nas nuvens.
Procurei, então, alguém em Hong Kong que pudesse
dar-me umas explicações sobre isso, mas não
encontrei ninguém. Alguns amigos missionários me
disseram, em tom sombrio:
— Na China, aconteceu uma coisa muito
perigosa que ocasionou divisão nas igrejas.
Os missionários pentecostais informaram-me
que haviam feito um acordo com os demais
evangélicos de não conversarem com outros sobre os
assuntos em que divergissem, falando só sobre Jesus.
Mas o ensino sobre os dons estava na Bíblia, tinha
vindo de Deus, como isso poderia ser perigoso?
Com o passar dos meses, comecei a pôr de lado
a questão toda. A experiência não havia mudado em
nada a minha vida espiritual. Ainda continuava ron-
dando a Cidade Murada, todas as noites ia a um culto
qualquer, procurava ajudar as pessoas, mas parecia
que não estava conseguindo nada. Senti como se
tivesse sido enganada.
"Quem eles pensam que são?" indaguei comigo
mesma, na primeira vez que ouvi falar do casal
Willans. Era um casal americano, a filha Suzanne e
uma amiga, Gail Castle, que acabara de chegar a
Hong Kong. Eles iam realizar reuniões de
oração. "Hong Kong não precisa de mais reuniões de
oração. Eu mesma tenho reuniões todos os dias. Eles
deveriam, primeiramente, conhecer a situação da
igreja aqui."
Já haviam-se passado dois anos desde que eu
chegara da Inglaterra, e um ano que eu supunha
haver recebido "o dom do Espírito". Sentia-me uma
autoridade na questão de reuniões de oração da
Colônia. Mas uma amiga minha, Clare Harding,
insistiu em que eu fosse, dizendo que seria uma
reunião carismática.
— Está bem, vou freqüentar durante algum
tempo, respondi.
E foi então que fiquei conhecendo Rick e Jean
Stone Willans.
— Você tem o dom de línguas, Jackie? indagou
Jean. Ora em línguas?
— Para dizer a verdade não o faço. Não vejo
nele muita utilidade. Não me ajudava em nada; então
parei de orar.
— Mas isso é um grande erro, disse ela. Não se
trata de um dom de emoção, para satisfação própria,
é um dom do Espírito. A Bíblia ensina que aquele que
ora em línguas é edificado espiritualmente. Portanto,
não se importe muito com o que sente, exercite-o.
E assim ela e Rick me fizeram prometer que iria
orar em minha língua celestial todos os dias. E em
seguida, para meu espanto, sugeriram que orássemos
juntos em línguas. Eu não estava muito certa se isso
era correto, pois a Bíblia ensina que as pessoas não
podem falar línguas em voz alta, todas ao .mesmo
tempo. Explicaram que Paulo se referia a um culto
público, onde um estranho poderia entrar e pensar
que estavam todos loucos. Mas nós três ali não
iríamos escandalizar ninguém. Iríamos simplesmente
orar a Deus numa língua que ele nos concedera.
Não houve jeito de escapar, e então nos
pusemos a orar. Senti-me meio ridícula, dizendo
coisas que não entendia. Mas, em dado momento, eles
pararam de orar e eu fui impelida a continuar. Faria
qualquer coisa para não estar ali, orando em voz alta,
em língua estranha, diante daqueles americanos. Mas
quando pensei que estava para morrer de vergonha,
Deus me falou:
— Você não quer ser ridícula por amor a mim?
Entreguei os pontos.
— Está bem, Senhor, isso não faz muito sentido
para mim, mas como foste tu quem inventaste esse
dom, ele deve ser bom.
Quando acabamos de orar, Jean falou que Deus
lhe havia dado a interpretação do que eu dissera.
Meu coração estivera clamando pelo Senhor, como se
estivesse nas profundezas de um vale, e ele no pico
das montanhas. Eu lhe dirigira palavras de adoração
e suplicara que ele me usasse.
Tomei a decisão de nunca mais desprezar o
dom, se Deus me ajudasse a orar daquela maneira
todas as vezes em que o exercitasse. Aceitei o fato de
que ele estava-me ajudando a aperfeiçoar minha
comunhão e súplica.
E, dali por diante, passei a orar todos os dias na
linguagem do Espírito. Antes de fazê-lo, porém, eu
dizia:
— Senhor, não sei orar e nem por quem devo
interceder. Peço-te que ores por meu intermédio, e me
conduzas às pessoas que te desejam.
Mais ou menos um mês e meio depois, comecei
a notar que acontecia um fato maravilhoso. As
pessoas com quem eu falava de Cristo, criam nele. A
princípio, não entendi direito, e pensei que tinha
descoberto, por acaso, uma nova e excelente técnica
de evangelização. Mas, na verdade, eu dizia as
mesmas coisas que antes. Depois compreendi o que
havia acontecido. Eu estava falando de Jesus a
pessoas que realmente desejavam ouvir. Deixara que
Deus participasse de minhas orações e isso tivera um
resultado direto em meu trabalho. Eu estava pedindo
a Deus que realizasse sua vontade por meu
intermédio, quando orava na língua que ele me dera.
E não poderia orgulhar-me de nada. Só poderia
maravilhar-me de ver como Deus permitia que eu
tivesse uma pequena participação em sua obra. E aí
veio a emoção. Ela veio, quando vi os resultados
dessas orações.
Passei a conhecer melhor os Willans, e eles se
me tornaram ótimos amigos e conselheiros.
Experimentei mais uma vez a gloriosa liberdade de
viver, que possuímos em Cristo Jesus. Ao me
converter, eu aceitara o fato de que Jesus havia
morrido por mim, mas a partir de então eu começava
a ver os milagres que ele estava operando no mundo
hoje.
6
As Quadrilhas
— Hai bin do ah? De onde você é?
Aterrorizado, o rapazinho fitou os quatro mem-
bros da famigerada quadrilha 14K que avançavam
para ele ameaçadoramente. Em gíria da quadrilha,
estavam indagando a qual daqueles grupos ele
pertencia. Mas o rapaz não conseguia responder,
tremia demais.
— M'gong? Não quer falar, hein?
Ah Ping, o porta-voz da turma, aproximou-se
mais até ficar a um passo dele. Não havia meio de
escape. O rapaz estava encurralado num dos becos da
Cidade Murada. Eles o atormentavam, ironizando
seu medo, avançando lentamente, como que
deliciando-se sadicamente com o pavor que lhe
inspiravam.
O primeiro soco veio com grande rapidez, e
atingiu-o nas costelas — o treinamento que os
chineses têm no kung-fu produz grande flexibilidade e
economia de movimentos, que torna o soco preciso e
mortal. O menino caiu, e logo recebeu mais pancadas
no estômago, peito e virilha. Ele gemia, e se contorcia,
mas não disse nada. Então os outros foram
empurrando-o rua abaixo, chutando-o, enquanto ele
seguia aos tropeções, e depois se afastou
manquejando. Ficou então sabendo o que acontecia,
quando alguém entrava em território inimigo, sem a
devida proteção.
Aquilo dava enorme satisfação aos membros
das quadrilhas. Eles estavam no controle de tudo que
se passava ali em seu território. Foi aí que fiquei
sabendo que o salão que eu alugara situava-se bem
no meio da área controlada pela 14K, pois acabava de
presenciar aquela cena repulsiva.
— Por que fizeram isso? indaguei. O que
aquele rapazinho fez a vocês?
Ah Ping deu de ombros.
— Talvez nada, respondeu anuindo. Mas ele
não se identificou, então tínhamos que dar-lhe uma
lição. Provavelmente é dos nossos inimigos, o Ging
Yu, e temos que mostrar a eles quem é que manda
aqui.
Nos seus primórdios, a Sociedade Tríade era
uma agremiação secreta chinesa, cujos membros
faziam o juramento de derrubar o governo dos
opressores estrangeiros, e restaurar ao poder a casa
governante da China, a Dinastia Ming.
Nos dias atuais, a antiga Sociedade Tríade
encontra-se degenerada, tendo-se subdividido em
centenas de pequenos grupos, todos alegando ser um
prolongamento da tradicional Sociedade Tríade. Na
verdade, não passam de quadrilhas de marginais, que
utilizam esse nome e os rituais da antiga sociedade
apenas para camuflar suas atividades criminosas. No
passado, o indivíduo que quisesse filiar-se a uma das
sociedades tríades tinha que submeter-se a uma série
de rituais. Entre eles contavam-se decorar poesias,
aprender certas formas de aperto de mão e assinatu-
ras, e beber sangue, bem como derramar sangue.
Quando um homem entrava para uma delas, tinha
que jurar que iria seguir seu "irmão" para sempre.
Este era conhecido como daih lo, irmão maior; e o
iniciante era o sai lo, irmão menor. E esse laço era
indissolúvel. Um candidato a membro da Sociedade
Tríade poderia pedir a um membro efetivo dela que o
deixasse "segui-lo", e assim este se tornava seu irmão
maior. Cada quadrilha possuía uma complicada hie-
rarquia de deveres e posições de liderança. Alguns
dos chefes eram identificados por nomes estranhos, e
outras vezes apenas por números, tais como 489, 438,
26 e 415. Os membros comuns eram chamados penas
de 49.
As quadrilhas espalhavam terror por toda a
Hong íong, o que facilitava a extorsão de pagamento
por proteção. A Cidade Murada era sede perfeita
para as quadrilhas. Ali operavam dois grupos
principais, geograficamente separados por
determinada rua. O Jing Yu tinha o controle de todas
as salas de venda consumo de heroína. Também
recebia o pagamento por proteção, e explorava a
prostituição no setor a este da Rua Principal. Mas os
quadrilheiros mais temidos eram os da 14K. Esse
nome deriva do fato de ela haver sido organizada na
Rua Wah, n.° 14, em Tantão, com o objetivo de ajudar
a causa da China Nacionalista. Dizia-se que ela
contava com cem mil membros em todo o mundo, e
mais sessenta mil só em iong Kong, e que controlava
o comércio do ópio, os antros de jogatina, filmes
pornográficos, bordéis de crianças e outros negócios,
no setor oeste da cidade.
Seu comando era descentralizado, e a quadrilha
dele cada área tinha seu próprio dirigente, que
cuidava los interesses dela no local. Mas todos
conheciam os chefes principais, e os membros das
quadrilhas-irmãs eram chamadas de "primos". Assim,
em questão de minutos, um grupo tríade poderia
chamar a si dezenas de "irmãos", e, caso necessário,
podia organizar ama briga em poucas horas,
envolvendo centenas de quadrilheiros.
Enquanto as pessoas não ligadas às tríades
andaram pela cidade "rezando" para não serem
detidas, até mesmo os que pertenciam a Ging Yu ou
14K, quando saíam dela, só caminhavam em seu
próprio território. Eu, porém, andava por todas as
ruas indistintamente, chegando a conhecer o lugar
melhor que os próprios marginais, que se achavam
restritos a apenas um lado da cidade.
Os quadrilheiros que conheci observavam
aquela velha máxima de que existe honra até mesmo
entre ladrões. Em troca de uma obediência irrestrita
por parte do seu sai lo, o daih lo lhe prometia proteção.
Se um irmão menor fosse preso, o seu irmão maior
tinha que tomar providências, para que na prisão ele
recebesse comida, drogas e proteção, embora
fizessem restrições ao uso de drogas, já que sua
ausência diminuía sua utilidade para a quadrilha. E
foi minha preocupação pelos viciados que mais tarde
me aproximou de alguns líderes tríades, levando-me
a tomar chá com eles.
Não fiquei espantada ao saber que Christopher
iria ser iniciado numa 14K. Como poderia andar por
ali, se não pertencesse a uma quadrilha?
Ele freqüentara o clubinho com certa
assiduidade, mas, depois de certo tempo passou a me
evitar. Todas as vezes que tentava aproximar-me
dele, desaparecia. Começou a jogar e estava sempre
em companhia de marginais. Contudo, não queria
que eu visse o que estava fazendo. Chegou o dia em
que o apanhei. Encontramo-nos frente a frente, num
beco muito estreito, e ele não poderia dar para trás.
Estava encurralado. Eu carregava meu pesado
acordeon e pedi-lhe que carregasse o instrumento
para mim, à oficina de consertos. E enquanto
caminhávamos, eu ia conversando com ele.
— Christopher, em sua opinião, por que Jesus
veio ao mundo?
Ele não respondeu.
— Foi por causa dos ricos ou por causa dos
pobres? continuei.
— Por causa dos pobres, disse.
— Mas ele ama os bons ou os maus? indaguei.
— Jesus ama os bons, Sr.ta
Poon.
— Errado. Sabe de uma coisa? Se Jesus vivesse
no mundo hoje, estaria aqui na Cidade Murada,
sentado naqueles engradados de laranjas,
conversando com as prostitutas e cáftens, bem lá na
lama.
Não é correto dizer a um chinês que ele está
errado, mas eu estava ansiosa para que ele compreen-
desse o que eu queria comunicar-lhe. Não era hora de
me importar com convenções.
— Era nas ruas que ele passava grande parte
do tempo, conversando com criminosos conhecidos, e
ia numa igreja arrumadinha e limpa, esperando que
os bonzinhos fossem lá.
— E por que ele fez isto? perguntou incrédulo.
— Porque foi para isso que veio, respondi
lentamente. Não foi para salvar os bonzinhos, mas
para salvar os maus, os perdidos.
De repente Christopher parou. Estava pasmado
com o que ouvira. Aquela altura, tínhamos saído da
idade Murada e passávamos pela rua do mercado, ele
disse que queria ouvir mais, e então deixamos o
acordeon na oficina ali perto e nos sentamos num
banco público. Narrei-lhe a história de Naamã, o
general que fora atacado de lepra, e concluí:
— É muito simples. A única coisa a fazer é
buscar Jesus e ser purificado.
Os veículos passavam por nós aos roncos; o
povo conversava em altos brados, como se faz em
Hong Kong. Um avião desceu para aterrissar. Mas
hristopher não estava escutando nada. Tinha os olhos
fechados e falava baixinho. Estava confessando a
Jesus que falhara em sua vida, e lhe pedia que o
purificasse. E sentado ali à beira da rua poeirenta e
barulhenta, ele se tornou crente.
No sábado seguinte, ele apareceu no clubinho e
stemunhou diante dos outros, dizendo que na
semana anterior não cria em Jesus, mas agora o
conhecia, na palavra foi acolhida, a princípio, com
silêncio. Ias logo começaram as chacotas e risos.
Rapazes de família ruim simplesmente não se
tornavam crentes, isso era para moços bons,
educados, classe média. Ele devia estar brincando.
Mas não estava. E recusou-se a continuar com
sua iniciação na quadrilha. Já estava com o livro de
regulamentos que deveria memorizar, mas
devolveu-. Uma coisa dessas nunca acontecera antes,
no meio aquela gente. E sua decisão foi uma
revelação para mim também. Jesus estava em Hong
Kong também, tanto quanto estava na Inglaterra; e
aqueles que o buscassem poderiam encontrá-lo.
A transformação que se operou em Christopher
foi notável. Passou a trabalhar tão bem na fábrica, que
foi promovido. Passava todo o tempo livre no
clubinho, e aos domingos ia aos cultos na igreja.
Continuei a orar em Espírito em minha
devoção particular, e outros rapazes como
Christopher também fizeram a decisão de converter-
se a Cristo. Reuníamos para estudar a Bíblia e orar,
muitas vezes, e um dia, quando estávamos orando,
um deles recebeu uma mensagem em línguas.
Esperamos uns instantes, e daí a pouco
Christopher começou a dar a interpretação, em
cântico.
"O Deus, que me salvas das trevas,
Dá-me força e poder Para que eu viva no
Espírito Santo,
Lute contra o diabo com a Bíblia,
Fale aos pecadores desse mundo
E os leve a pertencer a Cristo."
Bobby, um outro rapaz, também recebeu a
mesma interpretação.
Embora nosso grupinho estivesse crescendo,
nem todos os rapazes que freqüentavam o clube
sabiam ao certo por que eu estava ali. Muitos vinham
apenas por causa das vantagens que obteriam.
Fazíamos piqueniques aos sábados ou acampávamos,
e eles não tinham que pagar nada. Contudo, não eram
gratos. Consideravam-se pessoas necessitadas, e
supunham que eu era sustentada por uma instituição
muito rica. Eram exigentes e agressivos. Um desses
era Ah Ping.
Naqueles meses e anos de contato, eu chegara a
conhecer Ah Ping muito bem. Ele ia ao clubinho
muitas vezes. Fora iniciado numa quadrilha tríade
com apenas doze anos, e já tinha fama de bom
lutador. Certa noite, quando cheguei ao clubinho, ele
estava vagando pela rua. Eu me sentia meio deprimi-
da, e ele percebeu isso.
— É melhor você ir embora, disse. Largue este
lugar, Poon Siu Jeh. Não adianta trabalhar por nós.
Procure estudantes bem comportados e pregue para
eles. Eles serão ótimos crentes. Nós não prestamos,
(ão sei por que você não desiste. Você arranja estudo
ara nós, e não vamos às aulas. Arranja empregos, e
nós os perdemos. Nunca mudaremos. Então, por que
inda fica aqui?
— Fico porque foi isso que Jesus fez por mim.
Eu também não o queria, mas ele não esperou que eu
o quisesse, para depois morrer por mim. Ele morreu,
morreu por mim, quando eu ainda o odiava. Apenas
disse que me amava e que me perdoava. Foi esse
Jesus que veio ao mundo e ressuscitou os mortos, que
fez milagres e só praticou o bem. E ama você também,
do lesmo jeito.
A princípio, Ah Ping não disse nada, depois
falou.
— Não pode ser; ninguém ama a gente desse
jeito. Quer dizer, nós... e sua voz ficou embargada.
Mas logo em seguida ele prosseguiu:
— Quero dizer, nós vivemos estrupando,
roubando, brigando, esfaqueando. Ninguém pode
nos amar assim.
— Pois Jesus os amou. Ele não gosta das coisas
que vocês fazem, mas ama vocês. Isso pode parecer
stranho, mas ele disse que todas as coisas erradas que
vocês praticaram eram dele, e quando ele morreu ia
cruz, declarou-se culpado de todos os nossos rimes.
Isso é muito injusto, não é? Mas se você lhe entregar
todas as coisas ruins que já praticou, ele lhe dará sua
nova vida. É como se você lhe entregasse sua roupa
suja e recebesse as dele, completamente limpas.
Ah Ping estava esmagado. Era difícil acreditar
que existisse um Deus assim. E ele se sentou ali e
pediu a Jesus que o perdoasse e transformasse sua
vida.
Ele foi o primeiro quadrilheiro a ligar-se aos
Tentes. Quando estava com apenas quatorze anos,
ima jovem prostituta ofereceu-se para "sustentá-
lo" ;m troca de proteção. Mas a partir de então todo o
seu nodo de vida se modificou de forma radical.
Todas as noites ele levava seus "irmãos" para o
clubinho e me pedia que lhes falasse de Jesus. Os
poucos freqüentadores do clube que tinham a vida
certinha — os alunos da escola — pararam de ir, pois
sentiam que estavam sofrendo discriminação. Eu
achava, porém, que havia dezenas de lugares em
Hong Kong onde aqueles rapazes podiam receber
cuidados e assistência, e então não impedi que se
fossem. E foi somente muitos anos depois que
conseguimos reunir esses dois tipos de pessoas tão
diferentes: os maus e os "bonzinhos".
Alguns amigos de Hong Kong vieram a
conhecer Ah Ping e o convidaram para dar seu
testemunho na igreja, num sábado.
— Tome muito cuidado, disse-lhe eu. Satanás
não gosta quando uma pessoa fala de Jesus.
Provavelmente ele tentará atacá-lo de alguma forma
daqui até sábado. Vá direto para casa e não pare em
lugar nenhum.
— Está certo, está certo, Sr.ta Poon, respondeu
acenando afirmativamente, com docilidade.
Mas logo que se afastou, rebelou-se.
— Diabo? Bobagem. Conheço estas ruas como a
palma da minha mão. Cuidado com quê?
E foi dar umas voltas, antes de ir para casa. De
repente, sete homens saíram de um beco escuro e o
atacaram. Eram quadrilheiros Chiu Chow. Mais tar-
de, quando Ah Ping me relatou o fato, disse:
— Quando eles se aproximaram, ocorreram-me
dois pensamentos. O primeiro foi: "Ah, isso é culpa
da Sr.ta Poon". E logo em seguida: "Você deve orar."
Então ele ficou orando, enquanto os homens o
agrediam a pauladas, deixando-o no chão inconscien-
te.
— Logo que comecei a orar, meu pai veio
descendo a rua e quando eles o viram, fugiram
correndo. Se não fosse isso, teriam me matado.
Mas, mesmo assim, ele ficou com um ferimento
grave nas costas e um corte na garganta. O pai foi
buscar socorro com seus irmãos da quadrilha 14K.
Levaram-no ao médico, e este afirmou que ele não
poderia andar nem falar pelo menos durante duas
semanas.
Os irmãos de Ah Ping decidiram vingar a
agressão que ele sofrera. Fizeram uma reunião na
sede da quadrilha para combinarem um plano de
ação. Depois pegaram faccões e disseram a Ah Ping:
— Vamos esfaqueá-los, está bem?
Falando com muita dificuldade por causa da
garganta ferida, o moço replicou:
— Não; agora sou cristão e não quero que
revidem.
Depois ele chamou um ou dois membros de
nosso clubinho que eram crentes, foram para lá e
puseram-se a orar. Oraram a noite toda pelo grupo
que o tacara. Além de orar pelos inimigos, pediu aos
outros rapazes que impusessem as mãos sobre ele e
orassem ara que fosse curado.
No dia seguinte, estava completamente bom,
dando com toda clareza. Aliás, dois dias depois ele
falou na igreja. Testificou da mudança que se operara
m seu coração e disse também que nunca mais iria
menosprezar o diabo. Sabia que ele estava sempre por
certo.
Mas as brigas de quadrilhas eram um problema
que os convertidos teriam de enfrentar com
freqüência.
Lembro-me de um culto num domingo à noite
na Igreja Oiwah. O simples fato de poder ir à igreja
era ator de orgulho para aqueles chineses um pouco
mais prósperos que os outros. Ergui os olhos do
teclado e pude ver alguns professores da escola com
os vendedores do mercado e verdureiros. Todos com
aparência de gente direita, séria e respeitável. O fato
de eu me preocupar com os jovens marginais
deixava-os bastante espantados. Não gostavam muito
de ver aqueles rapazes na igreja, ao passo que eu
ficava lá, sentada, irando para que eles fossem.
De repente, a porta se abriu de ímpeto, e os
garotos entraram. A aparência deles provocou
repulsa na congregação. Mas até eu me espantei, pois
eles estavam num estado terrível: sujos de lama e
sangue e as roupas rasgadas. Vários tinham
arranhões no rosto. Todavia, sentaram-se e
permaneceram quietos durante todo o tempo. Logo
que terminou o culto, fui apressadamente até onde se
achavam, para saber o que havia acontecido.
Ao que parecia, haviam caído numa armadilha.
Entraram num banheiro público para se arrumarem
um pouco antes de irem à igreja; um grupo de
quadrilheiros saltou por sobre os compartimentos e
os atacou violentamente com bastões. Vários deles
ficaram bastante feridos. Levei-os a um hospital.
Estava muito feliz de eles terem me procurado na
igreja, após uma luta tão terrível. Ingenuamente,
achei aquilo maravilhoso.
"Graças a Deus", pensei, "eles não foram
procurar seus chefes de quadrilha, mas vieram
procurar os cristãos."
Pouco depois eu fiquei sabendo que o resto da
congregação encarou o incidente todo de uma pers-
pectiva diferente. Estavam enfurecidos pelo fato de os
rapazes terem tido a ousadia de entrar na igreja
naquele estado, e tão mal cheirosos. Não aceitavam a
idéia de que aqueles garotos pudessem tornar-se
crentes. Pensavam que uma mudança interior tinha
que ser seguida de uma mudança exterior, e que eles
logo deviam passar a usar gravata e sapatos de
cadarço. E mostravam-se bastante transtornados por
eu haver permitido que entrassem na igreja pouco
depois de terem participado de uma cena de
violência. Pelo que sabiam, nunca nenhum deles se
tornara cristão. E quando pedi para que fossem
batizados os que haviam-se convertido, a resposta foi
um "não" direto. Os rapazes precisavam antes passar
por um período de provação.
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Caça ao dragão jackie pullinger e andrew quicke

  • 2. E-book digitalizado com exclusividade para o site: www.bibliotecacrista.com.br e www.ebooksgospel.com.br Digitalização e Revisão: Levita Digital 11/09/2009 Por gentileza e por consideração não alterem esta página. Aviso: Os e-books disponiveis em nossa página, são distribuidos gratuitamente, não havendo custo algum. Caso você tenha condições financeiras para comprar, pedimos que abençoe o autor adquirindo a versão impressa.
  • 3. Título do original em inglês: Chasing the Dragon Copyright © 1980, Jackie Pullinger. Publicado na Inglaterra por Hodder and Stoughton, Londres. Tradução de Myrian Talitha Lins Primeira edição, 1982 Todos os direitos reservados pela Editora Betânia S/C Caixa Postal 5010 30.000 Venda Nova, MG Composto e impresso nas oficinas da Editora Betânia S/C Rua Padre Pedro Pinto, 2435 Belo Horizonte (Venda NovaX MG Printed in Brazil
  • 4. Índice Prefácio Glossário 1. Rastros de Sangue 2. Para a China de "Canoa" 3. Uma Cidade Chamada Trevas 4. O Clubinho 5. Luz nas Trevas 6. As Quadrilhas 7. O "Irmão Maior" Está Olhando por Você 8. Perseguindo o Dragão 9. "Doenças" da Infância 10. É Jesus Mesmo 11. As Casas de Estêvão 12. Acolhendo Anjos 13. Testemunhos 14. E Por em Liberdade os Cativos 15. Andar no Espírito
  • 5. Para minha família, especialmente meu Pai. "E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra e, com ele, os seus anjos... Agora veio a salvação, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso o acusador de nossos irmãos..." Ap 12.9,10. Prefácio
  • 6. Fiquei conhecendo Jackie Pullinger em 1968, quando fui a Hong Kong para fazer uma filmagem. Um amigo nos apresentou, e ela me falou de seu trabalho na Cidade Murada. Fiquei fascinado pelo que me narrou, e fui visitar o lugar em sua compa- nhia. Era exatamente como ela o descrevera. Nos anos que se seguiram continuei a manter contato com ela, vendo seu trabalho desenvolver-se mais. O jornal Sunday Times publicou um relato de sua obra em 1974. Em 1978, ela foi à Inglaterra para falar sobre seu trabalho e, nessa ocasião, consultei-a sobre a possibilidade de, juntos, escrevermos um livro, dando um relato mais completo de tudo quanto lhe acontecera. Concordou, mas não sem certa relutância, e em 1979 voltei a Hong Kong. Alguns nomes e lugares citados no livro tiveram que ser modificados, para que as pessoas implicadas não sofressem nenhum tipo de prejuízo, a maioria das quais ainda vive naquela cidade. Excetuando-se esse detalhe, tudo o mais foi narrado da forma como ocorreu. Muitos dos eventos aqui narrados podem ser comprovados em outras fontes. Tenho que agradecer a muitas pessoas que nos ajudaram na feitura deste livro. Entre elas gostaria de mencionar Marjorie Witcombe e Mary Stack, de Hong Kong, que nos emprestaram sua casa, a Susan Soloman, da Califórnia, a meu irmão Edward e a seus colegas do Banco Mundial, em Washington, onde o manuscrito foi terminado, e sobretudo à minha esposa Juliet, que fez uma excelente revisão e deu sua contribuição durante toda a produção do livro. Esta- mos narrando aqui incidentes ocorridos até 1976
  • 7. apenas. O que aconteceu de lá para cá terá de aguardar um novo livro. Andrew Quicke Londres Abril de 1980 Glossário Amah: empregado (a). Congee: um mingau de arroz que se come no café da manhã. Daih lo: Irmão Maior.
  • 8. Daih ma: Mãe Maior, a esposa mais velha de um chinês. Daih pai dong: barraca de rua. For-gei: garçom ou operário. Fui-goih: arrepender-se. Gong-sou: conversações entre quadrilhas inimigas, como tentativa de solucionar diferenças. "Hai bin do ah?": De onde você é? Hak Nam: Trevas (Nome que muitas vezes é empregado para identificar a Cidade Murada de Hong Kong.) Hawh-fui: sentir muito um erro cometido. Kai na: madrinha Kai neui: afilhada (Estes dois termos são empregados para designar o relacionamento de uma mulher com uma criança que ela toma para criar.) Kung-fu: um tipo de arte marcial chinesa. Lap-sap: lixo. Mama-san: mulher que tem a seu encargo várias prostitutas jovens ou bar-girls. "M'gong?": Não quer falar? Mintoi: edredom. "Moe yeh": Nada. Pahng-jue: chefe de um salão onde se vende ou toma drogas. "Pa mafan": medo de complicações. Pin-mun: comércio ilegal. Poon Siu Jeh: Pullinger em chinês. Sai lo: Irmão Menor. Sai ma: Mãe Menor, esposa mais nova ou concubina de um chinês. Seui Fong
  • 9. 14 K Nome das diversas quadrilhas tríades que são ilegais em Hong Kong. Ging Yu Wo Shing Wo Siu yeh: lanche, merenda. Tin-man-toi: literalmente meteorologista; significa pessoa que vigia ou guarda. Wunton: espécie de pastel de camarão ou carne de porco. "Yau moe gau chor." Você deve estar louco! "Yaunk": Estou aqui. "Yeh sou ngoi nei." Jesus te ama! 1 Rastros de Sangue O guarda da porta soltou uma cusparada no chão do beco, mas fez um aceno de cabeça dando-me
  • 10. permissão para passar. Deixei-o ali agachado, e me espremi no pequeno vão entre duas construções escu- ras, para entrar nessa estranha "cidade" chinesa, tão temida pelo povo de Hong Kong. Por um instante, a escuridão do interior dela me deixou meio cega, e embora a essa altura já conhecesse o caminho muito bem, segui em frente, pisando cautelosamente na estreita ruela. Mantinha os olhos voltados para o chão por duas razões: para não pisar nas porcarias que escorriam para o rego aberto e para não receber em pleno rosto o lixo que era atirado das janelas à rua embaixo. Bati palmas a fim de espantar os ratos; foi preciso bater várias vezes, com força, para afastá-los. Foi então que avistei uma pequena mancha vermelha, e logo depois várias gotas. Não havia dú- vida de que era sangue. Senti a tensão no estômago, pois cria que sabia de quem era aquele sangue. O juiz me confiara a guarda de Ah Sor, pelo período de um ano. Mas uma quadrilha estava atrás dele para castigá-lo, devido a casos não solucionados. Ao que parecia, haviam-no encontrado. Avistei outras daquelas manchas lustrosas, e passei por mais dois tin-man-toi, os vigilantes das quadrilhas que controla- vam a Cidade Murada. Virei uma esquina e entrei na rua onde estavam situados os principais salões de jogatina, administra- dos pelos "irmãos" da quadrilha 14K. Passei pelos terríveis antros de ópio, onde se achavam outros vigias. Na rua seguinte, as manchas de sangue já se apresentavam mais numerosas. Estava impaciente
  • 11. para descobrir de quem era aquele sangue. Mas, ao mesmo tempo, a idéia me apavorava. Cheguei à rua principal, uma das poucas que possuía iluminação na Cidade Murada. Tive que andar com mais cuidado ainda, ao passar por outro salão de jogo. As prostitutas me reconheceram e gritaram de lá de seus compartimentos, junto ao cinema de filmes pornográficos: — Sr.ta Poon! Poon Siu Jeh, quer nos dar um auxílio? E estendiam as mãos cujos dorsos estavam marcados de pontas de agulha. Em seguida, entrei em minha ruela, onde ficava o salão que alugara e que abria todas as noites para os rapazes das quadrilhas. A porta avistei uma poça de sangue maior. As pessoas que por ali se encontravam pareciam total- mente indiferentes. — O que aconteceu? indaguei temerosa. Um velho cantonês abanou a cabeça e resmungou: — Nada, nada! Num lugar controlado pelas quadrilhas tem que se viver com as mãos sobre os olhos, se quiser sobreviver. É mais seguro não ver nada, não se envolver com nada. Ali perto, brincavam várias crianças, com bebezinhos amarrados às costas, despreocupadas, como se nada tivesse acontecido. Temendo por Ah Sor, destranquei o portão de ferro, e entrei em nosso "clubinho". Estava escuro, úmido e malcheiroso. Era muito difícil conservá-lo limpo, pois não havia água encanada. Toda sorte de
  • 12. insetos e bichinhos saíam dos esgotos e andavam pelas paredes do salão. Eu tinha mais medo das aranhas que vinham das fossas, do que dos quadrilheiros. Naquela noite, porém, toda a minha atenção estava concentrada em Ah Sor. Sua mãe o tinha vendido, quando ainda era bebê, para um homem viciado em ópio, que não tinha filhos e temia morrer e ir para o inferno sem um filho para adorar seu espírito. Por isso, Ah Sor crescera com grande carência afetiva, mas, ao mesmo tempo, não sabia reconhecer um afeto sincero, quando lhe era oferecido. A fim de equilibrar essa forte sensação de rejeição, ele se agregou a uma quadrilha. Cresceu brigando nas ruas e recebeu sua primeira sentença de detenção na prisão juvenil aos treze anos. Durante os últimos anos, eu tinha tido conhecimento da história de sua vida e dos seus problemas e procurara ajudá- lo, mas ele continuava na mesma, sendo preso várias e várias vezes. Além disso, era viciado em drogas, como seu pai adotivo. Sentei-me num de nossos toscos bancos do clubinho e fiz a única coisa que po- dia — orei. Cinco minutos depois uma menina entrou ali correndo, arfando pelo esforço. — Sr.ta Poon, a senhora deve ir imediatamente ao Hospital Elizabeth. Estão chamando a senhora. — Quem está lá? É Ah Sor? — Só tenho que dizer-lhe para ir depressa. É alguém que está morrendo, concluiu e logo desapareceu. Tranquei tudo e saí. No caminho fui arrebanhando alguns rapazes que conhecia. Fora da Cidade Murada; pegamos um táxi.
  • 13. — Para o Hospital Elizabeth, depressa! Nosso amigo pode morrer. Os motoristas de táxi de Hong Kong não precisam de muito incentivo para correr, e o nosso ia zigue-zagueando entre uma pista e outra, com apenas uma das mãos no volante. Eu ia orando pelo caminho, as mãos apertadas uma contra a outra. "Talvez meu amigo morra", pensei em cantonês. Ele tinha tido uma vida tão miserável, que nem era vida, e cu desejava proporcionar-lhe coisa melhor. "Salva-o, Senhor!", orei baixinho. "Faz com que ele se salve." Então, o carro parou abruptamente com um guincho agudo dos pneus, e nós saltamos do veículo desejando ver Ah Sor antes que morresse. Mas não era Ah Sor. Fora Ah Tong quem deixara aquele sinistro rastro pelas ruas da cidade. Eu o conhecia apenas pela sua fama de ser um dos mais depravados chefes de quadrilha. Até mesmo seus colegas o desprezavam, pois ele costumava ir a festas, seduzia mocinhas e depois as vendia, com a vida assim arruinada, para o comércio do meretrício. Ao que parecia, a quadrilha Seui Fong havia-se emboscado num beco escuro, próximo ao nosso salão, armada de facões e canos. Isso era parte de uma guerra de quadrilhas por causa de um dos "irmãos" que fora prejudicado havia alguns anos. O alvo deles era Ah Sor. Quando este ia subindo a rua em compa- nhia de Ah Tong e de outro "irmão", não se apercebeu da emboscada. Então a quadrilha os atacou, procurando atingir sua vítima. Mas Ah Tong viu-os
  • 14. logo e atirou-se à frente do outro, para protegê-lo. Alguém atingiu seu braço, que foi quase seccionado, e os agressores o deixaram ali caído numa poça de sangue. Ah Sor e o outro rapaz o ampararam e saíram com ele aos trambolhões até chegarem a uma das saídas da cidade, onde pegaram um táxi. Deixando o colega no hospital, fugiram imediatamente. (Há sem- pre policiais postados nos hospitais, que os interro- gam sobre as brigas das quadrilhas.) A única informação que consegui extrair da enfermeira foi que o paciente provavelmente perderia o braço, se não a vida. Sentada ali no hospital, pensei no que ouvira e fiquei impressionada com o gesto do rapaz. Ele era mau, e levava uma vida terrível, mas revelara um amor muito raro. Jesus já havia dito: "Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor de seus amigos." Telefonei para alguns amigos e pedi-lhes que fossem ao hospital. Passamos a noite toda ali, orando. Quando a família apareceu, ficaram grandemente espantados com nossa atitude, para eles, incompreen- sível. O que fazíamos nós, pessoas direitas, cristãs, orando pelo seu filho? Ele era mau e só merecia mesmo morrer. Afinal, a irmã nos deu permissão para entrar na enfermaria onde ele se encontrava. Postei-me ao lado do leito e olhei para Ah Tong. Estava terrivelmente pálido, devido à perda de sangue, e inconsciente. Com muito cuidado, impusemos as mãos sobre ele e oramos em nome de Jesus. E enquanto estivemos lá, ele não recobrou os sentidos. Os boletins médicos do
  • 15. hospital, porém, eram cada dia mais animadores. Parecia que ele estava melhorando incrivelmente. Afinal, cinco dias depois de ter sido atacado, ele recebeu alta. Fora milagrosamente curado, e não apenas sobrevivera, mas também conservara o braço em perfeitas condições. Alguém poderia pensar que, depois de haver experimentado um milagre como esse, Ah Tong teria muito prazer em falar com um dos intercessores, mas, nos meses que se seguiram, mal ele me avistava, saía correndo. Estava com medo de mim. Contudo, recebi algumas palavras de agradecimento; — Ele sabe que foram suas orações que o salva- ram, disse um dos muitos mensageiros com recados de agradecimento. Se ele pensava assim, então por que me evitava? Meses depois vim a saber a razão. Era viciado em heroína, e precisava de várias doses diárias. Todo o tempo em que estivera no hospital, sua namorada lhe levara drogas. Sabia que eu era crente e que os crentes eram pessoas direitas, ao passo que os viciados eram depravados. Por isso, não lhe parecia correto vir ele mesmo expressar sua gratidão. Sentia-se por demais impuro, para se aproximar de um cristão. Alguns anos depois, Ah Tong entrou pela nossa porta no meio da noite. Fitou-me com uma expressão angustiada e disse abruptamente: — Poon Siu Jeh, estou desesperado. Já tentei largar o vício muitas vezes, mas não consegui. Será que pode me ajudar?
  • 16. — Eu, não, respondi, mas Jesus pode. E creio que há um fato a respeito de Jesus que você poderá entender perfeitamente. Faz alguns anos, você se dispôs a morrer por seu irmão, Ah Sor. Foi um gesto maravilhoso. Ah Tong tinha o cenho franzido, ouvindo com atenção. — Mas o que você diria de morrer por um rapaz de outra quadrilha? — Aaahhh! fez ele e soltou uma cusparada. Morrer por um "irmão" é uma coisa, mas ninguém morre por um inimigo. — No entanto, foi exatamente isso que Jesus fez. Ele morreu não somente para os de sua quadrilha, mas por todas as pessoas de todas as outras quadrilhas. Ele era o Filho de Deus e nunca fez nada errado. Pelo contrário, ele curava os doentes. Se crermos nele, ele nos dará sua vida. Não creio que a mente cheia de drogas de Ah Tong pudesse absorver todos os detalhes da doutrina da redenção, mas pude perceber claramente que alguma coisa havia acontecido. Ele se mostrou completamente atônito pela idéia de que Jesus pudesse amar uma pessoa como ele, e sentiu-se bastante tocado. Saí depressa com ele, e levei-o para o pequeno apartamento que tínhamos na ilha de Hong Kong. Era um apartamento bem pequeno, segundo os pa- drões ocidentais. Ah Tong se viu na sala, que também era sala de jantar. Tudo era muito limpo e bem arranjado. Era mais um lar, e não uma igreja. Mas o mais extraordinário ali eram as pessoas presentes,
  • 17. todas sorrindo. Havia vários ocidentais e muitos rapazes chineses, muitos dos quais ele reconheceu. Havia ali homens que ele tinha conhecido na cadeia, e outros que tinham sido seus companheiros de drogas. Porém, estavam todos belos e felizes, mais fortes e saudáveis. Eles se puseram a falar-lhe sobre o poder de Jesus que lhes havia transformado a vida. — Você nos conhece, disseram eles. Sabe que nunca empregaríamos essa linguagem santa, se de fato não crêssemos nisso. Quero dizer, a Sr.ta Poon e esses pastores aqui nunca tiveram de largar as drogas, e não sabem como é. Eu senti muitas dores, mas orei a Jesus, como me disseram, e deu certo. A dor desapareceu e me senti outro. Recebi novas energias: chama-se Espírito Santo. Falei em língua estranha, e não senti mais dor nenhuma. Logicamente, Ah Tong deve ter pensado: "Se eles podem, também posso. Se Jesus fez isso por eles, pode fazer por mim também." Então nos disse que queria crer que Jesus era Deus e pedir-lhe que modificasse sua vida. Em seguida, orou e logo seu rosto magro e sulcado de rugas se relaxou, e ele sorriu. Os outros ex-marginais ali presentes se entreolharam felizes, participando daquele milagre. Ah Tong recebeu o dom de línguas. Quando se deitou naquela noite, seus olhos tinham uma expressão de grande alegria, e ele foi-se aquietando mais e mais, até cair num profundo sono. O rapaz permaneceu na casa. Não houve necessidade de passar por uma desintoxicação
  • 18. dolorosa, que constitui uma tortura tão grande para o viciado, que pode causar-lhe a morte. Não lhe demos nenhum remédio, nem mesmo uma simples aspirina. Todas as vezes que sentia a primeira pontada de dor, começava a orar na sua nova língua. Sua desintoxicação processou-se sem nenhum sofrimento. Não houve vômitos, nem cãibra, nem diarréia, nem calafrios. Ah Tong começou uma nova vida. 2 Para a China de "Canoa" Os agentes da imigração subiram a bordo do navio, e eu era a primeira da fila, ansiosa que estava para desembarcar. Cedo, de manhã, eu me aprontara e subira para o convés. A vista que se tinha dali era de cair o queixo. Lá estavam as montanhas de cumes
  • 19. brilhantes, sumindo-se à distância, em meio à bruma, como num quadro oriental. Percebi que meu coração estava inundado de grande paz, e ao reconhecer que aquele era o lugar que Deus havia escolhido para mim, agradeci-lhe. Eu me achava ali, esperando e contemplando o mar da China, na "Pérola do Oriente", Hong Kong. Cercava-nos a enseada, que separava a Ilha Victoria da Península de Kowloon. Ela estava pontilhada de barquinhos. Balsas se moviam entre as diversas ilhas adjacentes, levando operários, e nos ancoradouros viam-se muitos dos antiquíssimos juncos, que traziam toda sorte de alimentos da China territorial para a Colônia. Pareciam estranhamente antiquados em comparação com os modernos arranha-céus que se erguiam logo atrás, nas encostas dos morros, na Ilha de Hong Kong. Um pouco mais perto, após as docas, entreviam-se nesgas de ruas chinesas, tão singulares, encantadoras, com o exotismo próprio do Oriente. Erguendo os olhos, vi à distância ás colinas dos Nove Dragões, nos Novos Territórios, que se estendiam até a fronteira da China de Mao. Vista do mar, numa manhã ensolarada, Hong Kong era belíssima. O agente da imigração não demonstrava o mesmo entusiasmo que eu. Pegou os formulários preenchidos, nos quais eu declarava que tinha vindo à Colônia para trabalhar. — Onde mora? indagou. — Na verdade, ainda não tenho onde morar. — Endereço de amigos?
  • 20. — Ainda não tenho conhecidos aqui. — Onde trabalha? — Bem, não... ainda não tenho emprego. Ele me fitou com uma expressão de desalento. Até esse ponto conseguira levar bem a entrevista, mas minhas respostas não se achavam muito de acordo com o "figurino". Tentou fazer mais algumas inda- gações suplementares. — Onde está sua mãe? — Na Inglaterra. — E sua passagem de volta? — Ainda não tenho. Não estava nem um pouco preocupada por não ter passagem de volta, e não compreendia por que ele tinha que estar. Afinal, seu rosto se iluminou oomo se encontrando a solução. — Quanto tem em dinheiro? Também fiquei satisfeita, pois pensava estar muito bem financeiramente. Chegara ali quase que com a mesma quantia que tinha ao embarcar. — Mais ou menos HKS100 dólares, respondi orgulhosa. — É pouco, replicou ele rispidamente. Hong Kong é um lugar de vida muito cara. Não dá nem para três dias, concluiu, e saiu apressado, à procura de seu chefe. Os dois confabularam por alguns instantes, depois voltaram para onde me encontrava. — Embora a senhora seja britânica, falou o chefe, vamos negar-lhe permissão para desembarcar. Espere aqui.
  • 21. Fiquei ali parada, me perguntando o que iriam fazer comigo. Na imaginação, já os via trancando-me num camarote, obrigando-me a voltar para a Ingla- terra. Meus amigos iriam dizer: — Não falei? Onde já se viu, sair pelo mundo fora, seguindo a orientação de Deus! Que atitude mais irresponsável! O que eu faria? E como viera parar aqui? Quando minha mãe ficou grávida de mim, pensou que estava esperando uma criança só, mas deu à luz gêmeas, o que deve ter sido uma grande decepção para meu pai, que tinha esperanças de fundar um time de rugby* e acabou com quatro filhas. Então procurei compensar o fato comportando-me como um garoto. Subia em árvores e corria muito, gostava de brinquedos masculinos e bicicletas. Uma das recordações mais antigas que tenho, foi de quando estava com quatro anos. Lembro-me de que estava encostada ao aquecedor, em nossa casa, e pensava: "Será que vale a pena ser bom neste mundo?" Acabei-me decidindo que, fosse lá o que eu escolhesse fazer na vida, um dia seria conhecida e famosa. Mais ou menos um ano depois, eu e minha irmã gêmea estávamos na escola dominical, e uma missionária fez uma palestra. Estendendo o dedo para cada uma de nós, ela disse: — Será que Deus quer vocês no campo missionário? Recordo-me de que logo pensei que a resposta dessa pergunta nunca poderia ser "não", pois, logica- mente, Deus quer que todos vão para os campos. Mas
  • 22. não tinha a mínima idéia do que fosse um campo missionário. Eu me via a mim mesma sentada à porta de uma choupana, num lugar qualquer da Africa, sentindo-me muito nobre e digna. Contei a uma amiga da escola que desejava ser missionária. Foi um grande erro. Logo percebi que todos esperavam que eu fosse melhor do que os outros. __________________ * Esporte semelhante ao futebol americano e ao nosso futebol militar. — Mas você vai ser missionária! diziam em tom acusador, quando eu me comportava mal. Então inventei uma porção de outras carreiras para desviar a atenção dos outros: regente de orques- tra; a primeira mulher a escalar o pico do Everest; artista de circo. Contudo, interiormente, algumas coisas ainda me incomodavam. Certo dia, estava passeando na ponte do trem de ferro com Gilly, minha irmã gêmea. Como sempre, havíamos conseguido que nossa boa amiga Nellie nos desse pirulitos sabor limão, e pouco depois de começar a saboreá-los ocorreu-me um pensamento terrível: "Afinal, o que estamos fazendo aqui na terra? Para que serve a vida?" Parecia que me encontrava presa numa armadilha. Não podia viver da maneira que me agradasse, pois caso Deus existisse mesmo, um dia teria que dar satisfações a ele. E havia também o problema do pecado. Deitada no gramado, pus-me a olhar para o céu e a
  • 23. imaginar que Deus estava lá, com um livro bem grande, no qual estava o nome de todas as pessoas. Toda vez que alguém praticava um ato errado, ele colocava uma marquinha ao lado dele. Dei uma espiada na linha correspondente ao meu nome e a fila de marcas estava bastante comprida. Pois bem, não havia nada que eu pudesse fazer para sanar o mal. Afinal, encontrei a solução. Os anos estavam a meu favor, e então resolvi: — Se eu nunca mais fizer nada errado, nunca, nunca, talvez algum dia eu ainda pegue *Winston Churchill e fique igual a ele. Ele é a melhor pessoa que existe na terra, mas já é muito velho. Então, se eu parar de pecar agora, talvez eu termine mais ou menos igual a ele. No primeiro ano do curso ginasial cometi outro erro. _____________________ *O grande líder da Inglaterra na II Guerra Mundial, muito querido e respeitado por todo o povo. Eu e minha irmã estávamos sentadas à mesa do internato tomando chá com o inevitável pão preto. A cabeceira encontrava-se uma garota maior de nome Mirissa. Pensei em iniciar educadamente uma conver- sa, mas, infelizmente, escolhi o assunto errado. Tendo ouvido a primeira transmissão radiofônica de um programa de Billy Graham, mencionei como ficara impressionada com o evangelista. — Puro emocionalismo de massa! exclamou a moça desdenhosa.
  • 24. Eu tinha tanto respeito pela opinião das pessoas mais velhas, que depois, todas as vezes que se conversava sobre isso na escola, eu dizia com ironia: — Puro emocionalismo de massa! Chegou a época de nossa "confirmação" na igreja. Eu estava levando tudo muito a sério, mas sentia que os outros só estavam interessados nas roupas novas e no "chá de confirmação", que teríamos depois da cerimônia. Meu medo era que o ministro nos perguntasse, individualmente, em que críamos. Mas ele não o fez. Contudo, resolvi fazer-lhe uma pergunta. — Em que devo pensar, no momento em que o Bispo impuser as mãos sobre mim? — Ah, bem... é... ore! disse ele afinal. Eu e Gilly fomos até a frente e nos ajoelhamos, e o Bispo impôs as mãos sobre nós. Só me recordo de que, ao voltar para meu lugar, estava sentindo uma grande alegria. Minha vontade era rir de felicidade. Que atitude mais imprópria! Afinal, era um culto de confirmação espiritual, e aquele era o momento mais solene. O riso seria depois, na hora do chá. Eu tinha pensado antes que gostaria de me comportar de maneira bastante reverente e elegante nesse culto, e não parecia haver nenhuma associação entre ele e aquela alegria tão despropositada. Eu estava entre- gando minha vida a Deus, e não esperava receber nada em troca. A primeira coisa que fiz depois disso foi pegar a lista telefônica e procurar endereços de missões.
  • 25. — Desejo ser missionária, escrevi para elas, e creio que deveria começar a preparar-me desde já. Quais os cursos que devo fazer? Em resposta, eles me mandaram dizer que haviam colocado meu nome no seu rol de associados jovens. Nas férias, geralmente, eu trabalhava na fábrica de papai, ou então dava aulas particulares, ou funcio- nava como "carteiro" para o Correio, na época do Natal. Já me considerava uma pessoa integrada à sociedade. Depois, fui para o Real Conservatório de Música, onde descobri que os músicos achavam que o amor era o grande inspirador da música, e tive muito trabalho para me livrar de um pistonista. Vez por outra, eu passava pela sala da União Cristã e via lá o quadro de avisos. Sentia um aperto na consciência. Mas aqueles jovens ali me pareciam tão desinteressantes e sem graça, e, além disso, na sua maioria, eram organistas. Na cantina da escola, assen- tavam-se sempre juntos, parecendo muito santos; não me atraíam em nada. Não sabia sobre o que conver- savam e nem me interessava saber. Davam a im- pressão de serem muito solenes e tristes, e embora me garantissem que minha vida mudaria depois que eu viesse a "conhecer Jesus", eu não queria mudar para ficar igual a eles. Nesse tempo, eu gostava de freqüentar festinhas, mas a principal forma de divertimento ali ou era imoral ou desinteressante. Contudo, eu sempre ia esperando encontrar ali o homem dos meus sonhos. Foi só depois de muito tempo que
  • 26. compreendi que ele nunca poderia estar presente numa daquelas festas. Certo dia, eu estava no trem, voltando da escola para casa, quando encontrei duas ex-colegas de escola. Elas me convidaram para ir a uma reunião em uma casa, onde um pregador maravilhoso faria palestras sobre a Bíblia. E eu fui. Ele era realmente fabuloso. Mas todas as outras pessoas também o eram. E o que mais me impressionou foi que eram todos gente normal, como eu. As moças usavam maquilagem. Os rapazes conversavam sobre corrida de automóvel — no entanto estavam ali porque desejavam estudar a Bíblia. Naquele ambiente foi muito fácil falar sobre Deus. Contudo, eu ainda ficava incomodada quando ouvia falar em céu e inferno. Mas o que mais me transtornava era a idéia de que ninguém podia chegar a Deus, a não ser por intermédio de Jesus. Compreen- di que ou eu tinha que aceitar tudo que Jesus dissera a respeito de si próprio, ou abandonar de vez a fé cristã. E não foi sem relutância que orei a ele dizendo que acreditava em tudo que ele dissera. E assim me converti. Passei a ter uma vida ainda mais cheia do que antes. Pouco depois disso, um homem me perguntou se eu acreditava em Deus. — Não, respondi. Eu o conheço. É diferente. Tenho paz e sei para onde estou indo. Mas essa nova vida também me trouxe alguns problemas. Certo dia, após o estudo bíblico, as moças tiveram um momento de oração. Abri os olhos para dar uma espiada. Sorriam parecendo muito felizes.
  • 27. Fiquei abismada, pois se críamos que iríamos para o céu por causa de Jesus, a recíproca também era verdadeira — quem não cresse nele não iria. "Como essas pessoas podem ficar sentadas aí sabendo disso?" pensei. "E as pessoas que ainda não ouviram as boas-novas?" Em conseqüência disso, passei a tomar parte numa cena que teria abominado, antes de minha conversão. Estava tocando piano numa reunião de jovens evangélicos em Waddon, cantando hinos sobre a salvação. Foi aí que tive certeza de que minha vida havia-se modificado mesmo. Depois que me formei, comecei a dar aulas de música. Mas eu queria dedicar toda a minha vida a uma obra qualquer, em algum lugar. E não havia nada que me impedisse de fazê-lo. Voltou-me a idéia de ser missionária. ' Então escrevi para missões, escolas e companhias radiofónicas da Africa. E todos responderam da mesma forma — não queriam meus préstimos. — Ainda não podemos dar-nos o luxo de ter músicos por aqui, diziam. Não me deixei abater, e tratei de pedir conselhos às pessoas que melhor pudessem me orientar. — O que você acha que devo fazer de minha vida? indagava. — Já orou pedindo a orientação de Deus? replicavam. Já havia orado, mas Deus ainda não tinha me dado uma resposta clara. A Bíblia ensinava que eu
  • 28. deveria crer e ele me orientaria. Uma noite, sonhei que nossa família estava reunida à mesa da sala de jantar, olhando um mapa colorido da Africa. Entre os diversos países daquele continente havia um que estava colorido de cor-de-rosa. Inclinei-me mais para ver qual era. Estava escrito "Hong Kong". Quando acordei, escrevi para o governo de Hong Kong explicando que era professora de música, formada, e gostaria de lecionar nesse país. Responderam dizendo que não havia vagas para músicos. Recorri então à minha sociedade missionária. Impossível, responderam. Não aceitavam candidatos a missionário com menos de vinte e cinco anos. Eu teria que aguardar um pouco mais. Ao que parecia, havia interpretado erradamente o meu sonho. Certa vez fui orar em uma pequena igreja de um povoado, um lugar muito calmo. Ali tive uma visão de uma mulher de braços estendidos, como se estivesse implorando ajuda. Fiquei a me indagar o que ela queria. Parecia desejar alguma coisa desesperadamente. Seria auxílios do Fundo Cristão? Depois, foram surgindo umas palavras que iam passando à minha frente, como se fossem a ficha técnica de um programa de televisão: "O que você pode nos dar?" O que, em verdade, eu poderia dar a ela? Se fosse missionária, o que iria dar às pessoas? Daria o que aprendera em meus estudos? Deveria talvez atuar como intermediária para conseguir-lhes alimentos, dinheiro ou roupas? Se eu lhes desse apenas essas coisas, quando saísse de lá, voltariam a
  • 29. ter fome. Mas a mulher da visão estava com fome de um alimento que ela não conhecia. Ocorreu-me, então, que o de que ela precisava era o amor de Jesus. Se ela o recebesse, quando eu saísse de lá, ela ainda estaria satisfeita, e poderia até transmiti-lo a outros. Finalmente sabia o que tinha a fazer — só não sabia onde. Pouco depois disso, encontrei um amigo que morava em West Croydon, que sabia que eu estava orando sobre meu futuro. — Já recebeu a resposta? indagou. — Não, respondi. — Gostaria de assistir às nossas reuniões? inda- gou. Lá estamos sempre recebendo respostas. Será que aquela gente de West Croydon pensava que tinha uma espécie de monopólio de Deus? Fiquei curiosa para saber o que acontecia nas reuniões. — Logo que cheguei, alguém me disse que não ficasse espantada se acontecesse algo de extraordiná- rio. Sentei-me perto da porta. Ao que parecia, iriam exercitar os dons espirituais, e eu queria ter facilidade de escapulir, caso fosse necessário. Não estava muito certa sobre o que iria haver ali. Pensava que talvez alguém fosse profetizar em voz alta. Mas a reunião foi muito ordeira e calma, com orações normais e os hinos de sempre. Um ou dois dos presentes realmente falaram numa língua que eu não compreendia, mas até certo momento não houve nenhuma profecia estrondosa, nem voz estridente de Deus falando comigo. Mas depois ela veio.
  • 30. Uma pessoa começou a falar em voz tranqüila, e logo tive plena certeza de que aquilo era para mim. "Vá. Confie em mim e eu a guiarei. Eu a instruirei sobre o caminho em que deve andar. Eu a guiarei com meus olhos." Tive certeza de que Deus estava com minha vida em suas mãos, e que muito breve iria conduzir- me a algum lugar. Não havia dúvida de que o povo de West Croydon recebia respostas de Deus. Voltei para casa, e pus-me a aguardar maiores orientações. Ainda não sabia para onde deveria ir. Dei aviso prévio em todos os empregos, de modo que estivesse livre para partir logo após o encerramento das aulas. Durante os feriados da Páscoa, trabalhei durante uma semana na igreja de Richard Thompson. Ele me conhecia havia bastante tempo, e eu sentia que poderia ajudar-me. Disse-lhe que eu e Deus nos achávamos numa encruzilhada. Ele me ordenara claramente que fosse, mas não me dissera para onde. — Se Deus está ordenando que và, é melhor você ir, replicou ele. — Mas como, se não sei para onde ir. Todos os meus pedidos de trabalho estão sendo rejeitados. — Bem, se você já tentou todas as formas convencionais de trabalho missionário e Deus continua dizendo para você ir, é melhor você começar a mexer-se. Se já tivesse um emprego, a passagem, o lugar para ficar, a aposentadoria e pensão, não precisaria confiar nele, continuou Richard. Desse modo, qualquer um pode ser missionário. Se eu fosse você, compraria passagem num navio com destino ao
  • 31. ponto mais distante possível, embarcaria nele, e depois iria orando todo o tempo, perguntando a Deus onde deveria descer. Depois de vários meses, era a primeira vez que eu recebia uma resposta definida. — É uma idéia maravilhosa, respondi. Mas me parece errada, pois eu adoraria fazer isso. Eu ainda pensava que tudo que o crente fizesse tinha que implicar em sofrimento, e que não podia ter nenhuma satisfação em sua fé. Mas Richard afirmou que esse plano era bíblico. Abrão, por exemplo, deixara sua terra e, obedecendo a uma ordem de Deus, seguira para a terra prometida sem saber para onde ia, pois confiava em Deus. — Não há o que temer, se você se colocar inteiramente nas mãos de Deus, disse Richard com muita seriedade. Se ele não quiser que você tome esse navio, ele a deterá, ou poderá levar a embarcação para qualquer lugar do mundo. A idéia me pareceu fascinante. O conselho de Richard era um pouco incomum, mas muito sábio. Em nenhum momento, ele me deu a impressão de que eu entraria no navio como uma pessoa comum, e sairia dele transformada em missio- nária, pronta para trabalhar. O que eu tinha de fazer era simplesmente seguir a Deus, aonde ele me man- dasse. Assim compreendi que não tinha nada a temer nessa aventura. Então fiz o que ele dissera. Procurei o navio mais barato, com o percurso mais longo possível, que
  • 32. passava por muitos países. Ia da França ao Japão. Comprei a passagem, e tudo estava resolvido. Naturalmente, eu teria que enfrentar meus pais e amigos. Alguns se mostraram descrentes. Meu pai, com muito bom-senso, insistia em que eu pensasse muito, em minha "viagem de canoa para a China". Meus pais estavam satisfeitos com a minha ida, mas um se preocupava com o outro. Orei pelo problema, e uma noite escutei os dois discutindo, cada um tentan- do convencer o outro de que estava tudo certo. O pessoal da minha sociedade missionária já não se mostrou tão entusiasmado. — Que conselho mais irresponsável para um pastor dar a uma jovem, disseram. E suponhamos que não tenha sido o Espírito Santo quem ditou as palavras para Richard Thompson? O dia em que parti foi um desses dias em que tudo dá errado. O táxi que havíamos contratado para nos levar a Londres apareceu com uma hora de atraso. Mas afinal vi-me acomodada no vagão do trem com minha bagagem. Richard Thompson surgiu correndo pela plataforma, gritando: — Glória a Deus! E daí a pouco o trem arrancou. O agente da imigração voltou-se para mim muito transtornado. Por um instante pensei que eu tinha vindo de tão longe até a Ásia, apenas para ser repatriada. Mas de repente lembrei-me do texto que lera pela manhã: "Eis que nas palmas das minhas mãos te gravei." Se meu nome estava gravado ali, então Deus sabia tudo que me dizia respeito.
  • 33. — Espere um pouco, disse eu, lembrando-me repentinamente de um afilhado de minha mãe. Eu conheço uma pessoa aqui. Ele é da polícia. O resultado foi dramático. Naquela época, 1966, a polícia era tida em alta conta, e qualquer um que tivesse um conhecido na força policial, obviamente era uma pessoa direita. Devolveram-me o passaporte resmungando que eu poderia desembarcar, sob a condição de que deveria procurar emprego imediatamente. Na opinião deles, meu dinheiro não daria nem para três dias de estada em Hong Kong. 3 Uma Cidade Chamada Trevas
  • 34. A Cidade Murada é guardada dia e noite, continuamente, por um exército de vigias. Assim que um estranho qualquer se aproxima, os vigias vão passando a notícia de boca em boca. Aqueles rapazes saem correndo por entre barracas de lanche, entrando e saindo por portas, e atravessando ruelas estreitas. As verdadeiras atividades da cidade ficam completamente camufladas para um forasteiro. Portas se fecham, janelas são cerradas e a queima de incenso disfarça o acre odor do ópio. Um dos nomes chineses dados à Cidade Murada é "Hak Nam", que significa "trevas". E realmente trata-se de um lugar de trevas horríveis, tanto físicas quanto espirituais. Mas quando se conhecem os homens e mulheres que vivem e sofrem em tal lugar, podemos ficar condoídos, cheios de compaixão. A Sr.a Donnithorne me convidara para visitar o jardim da infância e a igrejinha que organizara ali, mas não me havia preparado devidamente para o que iria ver. Pegamos um carro até a rua Tung Tau Chuen, situada nos arredores da cidade. É a rua dos dentistas clandestinos, que exercem seu trabalho ile- galmente, pois dentistas práticos não podem operar em Hong Kong. Logo atrás desses bizarros cômodos erguiam-se os precários arranha-céus da Cidade Murada. Passamos apertadamente por um vão entre duas das lojas de dentistas e pusemo-nos a caminhar por um beco escorregadio. Nunca me esquecerei do mau cheiro e da escuridão reinante. Era um cheiro fétido de comida azeda e de excremento, misturado ao de
  • 35. lixo e de vísceras de animais. Fomos andando por entre as casas, e a parte superior delas se projetava sobre a rua, formando uma espécie de arco sobre o beco. Parecia-me estar caminhando por um túnel subterrâneo. A medida que avançávamos, minha amiga ia comentando algumas coisas: à nossa direita uma in- dústria de flores de plástico; à esquerda, uma velha prostituta, que era velha e feia demais para conseguir fregueses. Então ela contratava meninas prostitutas para trabalharem para ela. E essas tinham muitos clientes. Nesse lugar depravado, a posse de uma criança prostituta era considerada apenas como uma excelente fonte de renda. "Tia Donnie" avisou-me que mantivesse o rosto voltado para o chão, caso alguém resolvesse esvaziar na rua seu urinol, no momento em que passávamos embaixo. Depois vinha o cinema de filmes pornográficos, uma espécie de pavilhão, inteiramente lotado. Mas havia um comércio normal também. Vimos homens carregando na cabeça latas de concreto re-cém-misturado. Mulheres, tendo nas mãos imensas sacolas cheias de flores artificiais, iam saindo das pequeninas saletas onde eram fabricadas. Ali não se observava o "Dia do Descanso". Cinco feriados ao ano eram mais que suficientes. Para um chinês, é de suprema importância que os filhos trabalhem para os pais, muitas horas por dia. Como pode existir um lugar destes bem no meio de Hong Kong, a Colônia da Coroa Britânica? Há cerca de oitenta anos, quando a Inglaterra se apossou da ilha chinesa de Hong Kong, da Península
  • 36. de Kowloon e dos territórios contíguos a ela, foi feita uma exceção. A velha cidade murada de Kowloon deveria permanecer sob a jurisdição da China, com seu mandarim, sujeita às leis chinesas. Mais tarde o mandarim morreu, e seu cargo nunca foi ocupado, nem por outro chinês nem por um inglês, e assim a desordem passou a reinar na Cidade Murada, onde prevalece até hoje. Ela se tornou um paraíso para o contrabando do ouro, antros de jogatina ilegal e todo o tipo de vícios. O desentendimento com relação à sua posse significava que a polícia não podia impor a lei e a ordem dentro dela. Quando querem procurar criminosos ali, entram em grupos grandes. A cidade tem uma população muito grande, mas é pequena. Em apenas seis acres de terra, vivem trinta mil pessoas, ou o dobro. As condições habitacionais são apavorantes. Não existem leis regulamentando a construção das casas; por isso as ruas se acham "entulhadas" de prédios de apartamento, situados em ângulos os mais loucos, sem água, luz ou esgoto. Excrementos são atirados nas ruas, que exalam constante mau cheiro. No andar térreo, existem apenas dois banheiros para as trinta mil pessoas. E esses dois não passam de buracos feitos no chão sobre fossas já transbordantes. Um é para as mulheres e o outro para os homens. Seria muito improvável que num lugar como a Cidade Murada houvesse escolas e igrejas. Mas a Sr.a Donnithorne tinha conseguido abrir uma escolinha primária. Os professores não eram formados, mas haviam feito o curso secundário. Era uma escola pequena, com várias centenas de alunos. No primeiro
  • 37. dia em que fui visitar o local, Tia Donnie pediu-me que lecionasse nela. Antes de pensar duas vezes repliquei: — Pois não! E sem que soubesse claramente em que estava me metendo, concordei em dirigir a bandinha de percussão, ensinar canto e conversação em inglês, três vezes por semana. Pelo sistema chinês, aprende-se tudo de cor. E todos os meses se fazem provas, bem como ao fim do semestre e do ano. A criança reprovada nos exames finais tinha que repetir todo o ano escolar. As aulas da bandinha e de canto não apresenta- vam muita dificuldade para mim, mesmo levando-se em conta que não conversava muito com os alunos, mas, quanto às aulas de conversação, meu fracasso foi total. Tentei vitalizar mais as aulas dramatizando as histórias, mas eles não corresponderam. Todas as vezes que tentava fazer isso aconteciam verdadeiras guerras na sala de aula. A liberdade que eu tentava aplicar, em poucos minutos transformava-se em anar- quia. Uma vez por semana, à noite, havia um culto numa das salas de aula. E a Sr.*a Poon — nome que, orgulhosamente, me deram em chinês — tocava o harmónio. A maioria das pessoas que vinham era constituída de mulheres mais velhas, algumas carregando crianças presas às costas. Vim a descobrir depois que muitas delas, sendo analfabetas, vinham à igreja para ter aula de leitura. Começavam cantando
  • 38. entusiasticamente, em voz bem alta. Em seguida, a instrutora bíblica expunha os ensinamentos em cantonês. Nessa época, eu não entendia uma palavra do que era dito, mas sentia que participava do culto. Na primeira noite em que lá estive, uma mulher me captou a atenção, naquele grupo de chineses. Era uma velha verdureira: tinha o rosto muito sulcado de rugas, e apenas dois dentes, que estavam sempre em evidência, pois a mulher sorria constantemente. Ela se aproximou de mim e puxou- me pela manga, com veemência. Ficou falando e falando, sorrindo e puxando a manga. Pedi a alguém que interpretasse para mim o que ela estava dizendo. — Até a semana que vem! Até a semana que vem! Tive vontade de dizer a ela que não poderia ir todas as semanas, pois morava muito longe, e quando voltava para casa já era muito tarde, e eu tinha que me levantar cedo para dar aula. Mas senti que não conseguiria explicar-lhe tudo isso. Ela só compreenderia que eu estaria ali ou não estaria. Então resolvi ir ao culto todos os dias, só por causa dela. Aquela altura, eu já tinha um emprego fixo: dava aulas numa escola primária, pela manhã. Lecionei ali durante seis meses. Além disso, auxiliava Tia Donnie na escolinha dela, três vezes por semana, à tarde, tocava nos cultos de domingo, e preparava programas musicais em prol de várias instituições de caridade. Isso tomava todo o meu tempo. Na segunda vez que fui à Cidade Murada, tive uma sensação maravilhosa: aquela vibração interior que se tem no dia do aniversário. E comecei a me
  • 39. indagar por que me sentia tão feliz. E na outra vez que fui ali, experimentei exatamente a mesma coisa. Isso me parecia um pouco descabido, num lugar tão revoltante como aquele. E, no entanto, quase todas as vezes em que me encontrava nesse reduto de marginalidade, nos doze anos que se seguiram, sentia o mesmo gozo. Eu já tivera um vislumbre dessa alegria no dia da minha "confirmação", e depois quando recebera a Jesus em minha vida — mas experimentar o contentamento espiritual nesse lugar profano? — Aquele ali é viciado, disse-me Tia Donnie certa manhã, quando nos dirigíamos para a escola. Nessa ocasião, eu ainda não sabia direito o que significava ser viciado. Ele iria nos agredir, roubar- nos o relógio ou ter um acesso? Era um homem de aspecto patético, que, com movimentos lentos, catava coisas num monte de lixo. Estava examinando os detritos ali deixados, um por um, para ver se havia algum objeto que pudesse ser de valor para ele. Dava a impressão de estar muito doente, o rosto muito pálido, e parecia ter setenta anos e não trinta e cinco. Usava uma camiseta de algodão bastante suja e sandálias de plástico, já bem gastas. A maioria dos chineses anda sempre muito limpa, mas o Sr. Fung estava imundo. Seus dentes eram pretos, quebrados. O cabelo cortado rente indicava que acabara de sair da prisão. Mas, para ele, a cadeia era apenas um lugar para dormir e comer com mais regularidade. Mas, na verdade, cama e comida não era o que importava para ele. Fung vivia para "perseguir o dragão". Essa maneira chinesa de tomar droga tem
  • 40. seu ritual próprio. O viciado chega a um local de comércio de drogas, pega um pedaço de folha de alumínio e coloca nela alguns grãozinhos de heroína. Acende um paviozinho feito de papel enrolado e coloca sob o alumínio, a fim de aquecer a droga. A heroína vai-se derretendo lentamente, transformando-se numa espécie de melaço escuro e fumegante. Ele coloca na boca a parte externa de uma caixa de fósforo para servir de funil, pelo qual ele irá inalando a fumaça. Em seguida, põe-se a mover a folha de alumínio, fazendo o filete de líquido grosso escorrer de um lado para outro, acompanhando o movimento da fumaça com a boca. Chamam a isso "perseguir o dragão". Pouco depois, fiquei sabendo que nem todos os viciados tinham uma aparência como a do Sr. Fung. Alguns deles estão sempre bem vestidos. Para estes, o fato de se apresentarem bem é uma evidência de que não se acham escravizados ao dragão. Como passara a ir à cidade com freqüência, vi o Sr. Fung muitas vezes. Comecei a me indagar se não deveria fazer alguma coisa por ele e por outros iguais a ele. A prostituição raramente era camuflada. A pri- meira prostituta que vi ali chamou minha atenção por estar usando batom e esmalte num tom vermelho berrante. Ficava o dia inteiro agachada na rua, uma rua tão estreita que o rego do esgoto passava perto de seus pés. Rua abaixo havia outras delas, sentadas sobre caixas de laranjas e uma delas tinha até uma cadeira. Na sua maioria também eram viciadas em drogas. As marcas escuras no dorso da mão revelavam que injetavam heroína diretamente na
  • 41. veia. Eu passava ali todos os dias e nunca saberia dizer quando estavam acordadas ou dormindo. Estavam sempre pendendo a cabeça, o branco dos olhos amarelado pelo torpor da heroína. Um dia tentei tocar na menorzinha. Aprendera a "Jesus te ama", em chinês. — Yeh sou ngoi nei, falei. Mas ela se encolheu toda, fugindo ao meu contato. Vendo a expressão de seu rosto, compreendi subitamente que cometera um erro. Ela colocara uma barreira entre nós, e eu não sabia o que fazer para derrubá-la. A moça estava fortemente constrangida, porque eu, uma jovem "limpa", cometera um engano e tocara nela, uma suja. Fui percebendo aos poucos que as mulheres mais velhas se engajavam na obtenção de clientes. Quando os homens saíam do cinema pornográfico, as mama-sans quase os agarravam e puxavam para ali. As vezes dava para ouvi-las dizer, empurrando-os escada acima: — Venha, ela é bem jovem, e é barato. Naturalmente, as mocinhas não ficavam com o dinheiro. A maioria das prostitutas era controlada por quadrilhas, e os bordéis só podiam funcionar com permissão da quadrilha, que controlava a área em que se encontravam. Havia duas mocinhas que eu via ocasionalmente. Uma delas era aleijada e a outra retardada. Ambas eram prisioneiras. Nunca saíam a não ser acompanhadas por uma mama-san. Eram visitadas por três clientes a hora. Nessa época uma tinha treze e a outra quatorze anos. Mais tarde, vim a
  • 42. saber, através de um membro da quadrilha, como essas moças eram iniciadas nesse tipo de vida. Os rapazes organizavam uma festinha e convidavam mocinhas. Durante a festa, as jovens eram seduzidas. Se resistissem, eram estrupadas. Via de regra, cada membro da quadrilha pegava sua menina e ficava com ela durante alguns dias. Depois que percebia que ela já estava afeiçoada a ele e acostumada com o sexo, ele a entregava a um bordel. Outras mocinhas se prostituíam, porque seus pais não tinham condições de sustentá-las, e as vendiam para o comércio da prostituição, onde permaneciam até se tornarem mais adultas. Depois disso, muitas dessas antigas meninas-prostituas fugiam de seus donos e se lançavam na carreira, fazendo a única coisa que sabiam. Algumas dessas crianças iniciavam este tipo de vida com nove anos de idade. Comecei a planejar um modo de alcançar essas moças, que estavam sempre tão bem vigiadas. Afinal tive que desistir disso e "arquivei" mentalmente o problema, mas tinha esperanças de que um dia pudesse encontrar um homem que se interessasse por esse trabalho, e pudesse pagar a quantia necessária para uma hora com elas, mas que, nesse tempo, pregasse o evangelho para a jovem. Talvez juntos, eu e ele, pudéssemos conceber um plano de fuga para elas, se alguma quisesse abandonar esse tipo de vida.
  • 43. 4 O Clubinho Às vezes penso que a verdadeira razão por que criei o clubinho foi Chan Wo Sai. Era um rapazinho feioso, de quinze anos, e com tantos problemas, quantos pode ter qualquer outra pessoa. Conheci-o quando dava aulas de inglês e canto na Escola Primária Oiwah, três tardes por semana. Estava ensi-
  • 44. nando uma musiquinha muito simples, sem arroubo nenhum, e, no entanto, lá estava Chan Wo Sai parecendo realmente empolgado com uma cançãozinha infantil. Girava os olhos e estalava os dedos. Depois levantou-se e pôs-se a dançar pela sala, vindo em minha direção, remexendo os quadris com um jeito bem sensual. Mandei que voltasse para o lugar, e passei a ensinar outra música. Após a aula, procurei descobrir as origens dele. Chan Wo Sai nascera ali mesmo, na Cidade Murada. A mãe era prostituta e o pai, um bêbedo. Viviam num pardieiro, numa casa que havia desaba- do. Toda a família ocupava um quartinho minúsculo. Na casa ao lado, moravam algumas prostitutas. Desde que se entendeu por gente, o garoto passou a conviver com esses fatos; eram parte de seu quotidiano. Seus horizontes eram limitados pelo bordel ao lado, os antros de jogo um pouco abaixo e os salões de ópio depois desses. Na Cidade Murada não havia nada que oferecesse a alguém uma atividade mais construtiva. Então procurei conhecê-lo e ajudá-lo a melhorar de vida. Isso seria um pouco difícil, já que eu não falava uma só palavra de cantonês. E para dificultar ainda mais as coisas, ele tinha uma deficiência de fala que embaraçava ainda mais nossa conversa. Nosso único ponto em comum era uma espécie de tambor que eu havia dado a ele. Consistia numa membrana de borracha presa numa armação de madeira, na qual se batia com baquetas; uma bateria surda. Ele tinha que treinar naquilo, mas não tinha o menor senso de
  • 45. ritmo. Mas ele se mostrava muito satisfeito, pois era a primeira vez na vida que alguém demonstrava algum interesse por ele. A medida que os dias iam passando, percebi que estava constantemente pensando nele, e isso me deixou um pouco alarmada. Minha mentalidade inglesa me levava a crer que qualquer amor por um rapaz tinha que ser de natureza romântica, e, sendo eu crente, isso teria que terminar em casamento. Mas, naquele caso, obviamente, isso era impossível, e até mesmo ridículo. Meu bom-senso dizia que ele era um rapaz feioso, com uma formação das piores possíveis. Mas eu realmente o amava e orava por ele constan- temente. Cheguei a um ponto em que estaria disposta a dar minha vida por ele. Algum tempo depois, vim a compreender o que se passava comigo, e fiquei bastante surpresa. Era como se Deus tivesse me concedido um amor especial por ele, que eu deveria demonstrar, embora não se tratasse de um sentimento que devesse ou pudesse ser retribuído. Era um amor que tinha por objetivo o bem dele, e diferia bastante do amor que eu sentira por outras pessoas, para o qual sempre tinha desejado alguma forma de retribuição. Dentre os vários grupos humanos necessitados que pululavam a Cidade Murada, o mais desatendido era o dos adolescentes. As crianças menores, pelo menos, tinham a chance de freqüentar uma escola primária. Mas os adolescentes não tinham nada. Era praticamente impossível estudar num ginásio. E eles tinham de trabalhar nas indústrias de plástico, onde ganhavam pouquíssimo.
  • 46. Muitos rapazinhos, e até mocinhas, saíam de casa e iam viver com outros jovens em cômodos miseráveis. Pouco depois, não tendo nenhuma atividade, caíam na senda do crime. Muitas vezes, as quadrilhas é que lhes ofereciam a única forma de ocupação possível. Durante o verão de 1967, toda a China fora con- vulsionada pelas atividades da Guarda Vermelha. Aquela "epidemia" chegou também a Hong Kong. Houve tumultos por toda a colônia. Vim a descobrir, porém, que alguns rapazes da Cidade Murada esta- vam sendo pagos para participarem do tumulto. Per- cebi então que poderia convencê-los a fazer um piquenique. Então, num dia úmido de junho, disse a Tia Donnie em tom bastante pomposo: — Acho que Deus está querendo que eu organize um clubinho para jovens. Eu imaginava o trabalho sendo realizado com o auxílio de uma equipe de obreiros cristãos da ilha de Hong Kong, todos escolhidos a dedo, que iriam avan- çar sobre a cidade com um programa de ação mu.'to bem planejado, enquanto eu ficava sentada, assistin- do e aplaudindo. Meu plano era termos um salão que abrisse todas as noites, e aos sábados e domingos. Seria um lugar onde os rapazes pudessem jogar tênis de mesa e engajar-se em outras atividades saudáveis, mas igual- mente um lugar onde ouvissem falar de Jesus. Mas Tia Donnie tinha uma atitude mais prática. — Ótimo! Há anos estou orando por isso. Quando pretende começar? A semana que vem?
  • 47. Começamos uma semana depois. Ainda dava para contar nos dedos as palavras de cantonês que eu sabia. Não contava com minha equipe escolhida a dedo e não tínhamos um local para nos reunirmos. Mas passamos a usar uma sala da escola nos sábados à tarde. E Gordon Siu; um jovem chinês que eu conhecera na Orquestra Juvenil, veio em meu auxílio como intérprete, tornando-se um esteio para mim. Ele me ajudava a alugar ônibus, acompanhava-nos nos piqueniques, ou ia patinar conosco. Pouco depois, começaram as férias, e, ao pensar que os rapazinhos poderiam envolver-se mais nos tumultos de rua, resolvi ampliar ainda mais nossas atividades. De reuniões apenas aos sábados, passamos a ter um completo programa de verão, com piqueniques, caminhadas a pé e visitas às plantações do refloresta-mento. E nos anos que se seguiram realizamos o mesmo programa em julho e agosto. Os primeiros a aparecer foram os adolescentes de treze e quatorze anos, que traziam também seus amigos de fora. Todos sabiam que eu estava ali basicamente porque era cristã, e que em toda a programação sempre haveria uma pequena palestra no início. Eles não gostavam muito de ouvir falar de Jesus. Nem ao menos sabiam direito quem ele era. Alguns jovens me disseram que não poderiam ir ao clubinho. — Nós bebemos e fumamos, vamos ao cinema e jogamos, e sabemos que os crentes não fazem essas coisas. Pouco depois, Chan Wo Sai largou a escola. Estando com quinze anos, era um dos mais velhos
  • 48. alunos do quarto ano. Achava-se com quatro anos de atraso, pelo menos, em seus estudos. Ele resolvera não concluir o ano. Fora aberto um novo cinema, e ele conseguira um emprego de vender ingressos. Para a inexperiente professora inglesa, largar a escola primária era uma coisa terrível. Durante todo o período das férias, tentei persuadir o garoto a voltar. Por fim, ele resolveu ir conversar com os professores, mas eles se recusaram a recebê-lo. — Olha, Jackie, disse um deles, ficamos muito satisfeitos quando ele decidiu sair, porque não conse- guíamos controlá-lo mais. Pois que vá! E era uma escola missionária! Os professores eram crentes, e eu imagina que, quando se reuniam para orar, intercediam por alunos difíceis e problemáticos como Chan Wo Sai. Mas a verdade era que a maioria deles mal havia completado o segundo grau. Diziam-se cristãos apenas para conseguirem o emprego, e eram incapazes de controlar quaisquer alunos, a não ser que fossem bastante dóceis. A única alternativa que restava a Sai era fazer um curso profissionalizante, onde pudesse aprender algum ofício. Viemos a descobrir, porém, que ele não se qualificava para nenhum deles, ou porque já passara da idade, ou porque não tinha terminado o primário, ou porque não falava inglês. Todas as portas se fechavam para Chan Wo Sai, embora ele tivesse apenas quinze anos. O que iria suceder-lhe? Parara de estudar e, ao que parecia, a única perspectiva de vida para ele era vender ingressos no cinema. Não havia nada mais
  • 49. que eu pudesse fazer por ele, a não ser manter o clubinho em atividade. Vários dos seus amigos que paravam de estudar iam para as quadrilhas. Sentiam que ali tinham uma função na vida. Tinham sua posição certa e eram tratados como uma pessoa importante. Encontravam ali até um pouco de carinho e afeto, consideração e amizade, o que não achavam em nenhuma outra parte. Tanto na igreja como na escola, o sucesso nas provas era sinônimo de valor e integridade. Mas nem nas quadrilhas nem em meu clubinho, eles escutavam palavras de condenação ou rejeição pelo fracasso. O nosso Clubinho Jovem era realmente bem diverso de tudo o mais que havia na Cidade Murada. Ninguém obtinha lucros com ele; não era controlado por chefes de quadrilhas. Tivemos de mudar várias vezes, mas era sempre o mesmo. Um salão com alguns joguinhos tais como mesa de pingue-pongue e alvo para dardos, alguns bancos toscos e uma estante com alguns livros evangélicos". Outro rapaz que vim a conhecer bem naquela época foi Nicholas. Tanto o pai como a mãe já tinham sido processados por venda de drogas, e a família toda vivia numa das piores casas que já vi. As duas filhas mais velhas eram prostitutas. E todos moravam em apenas um cômodo pequeno e malcheiroso. Os membros da igreja não gostavam de Nicholas, pois ele, do mesmo modo que Chan Wo Sai, exercia uma influência negativa sobre os outros alunos da escola. Naturalmente eles sabiam que suas irmãs eram meretrizes e o pai viciado em ópio. Na opinião deles, o fato de eu receber Nicholas em nosso
  • 50. clubinho implicava em descrédito para o bom nome da igreja cristã. Eu não devia nem ser vista em companhia dele. Eu sabia que o rapaz tinha má conduta e estava sempre dando trabalho. Mas eu o amava, embora isso fosse absurdo. Jesus viera ao mundo por causa de pessoas iguais a ele, o que também não fazia muito sentido. Resolvi então fazer-me amiga dele e visitá-lo seguidamente. Interessava-me bastante por ele. Encontrava-o nos antros de droga, e, quando era preso, acompanhava-o à delegacia, e ali orava por ele. Mas nada disso o tocava para que se modificasse. Vim a compreender depois que naquele lugar de tamanhas trevas não havia a noção do conceito de retidão. O crime, a mentira e a corrupção eram coisas certas, desde que dessem lucro. Mas as pessoas que assim pensavam assumiam uma atitude de moralida- de em minha presença. E achavam que tal atitude era correta, já que eu era representante da Igreja, do Sistema. — Nicholas é um menino terrível, dizia a mãe, repreendendo-o bem na minha frente, e depois se lamentava: não sei por que meus filhos são todos uns perdidos. E ela era uma pessoa que preparava os saquinhos de heroína para vender aos viciados. Tempos depois, uma das meninas mais novas, Annie, também se tornou prostituta. Mas, afinal, acabou fazendo um bom casamento. O noivo era for- gei, mas também trabalhava para a polícia, fazendo a arrecadação do dinheiro do suborno. Annie ficou
  • 51. muito feliz de se casar com ele, pois o rapaz tinha seu próprio carro. E sua mãe também ficou encantada. Certo dia, quando eu caminhava pela rua, um velho correu ao meu encontro. Tinha o rosto esquelé- tico dos viciados em ópio, e estava furioso. — Poon Siu Jeh, você tem que reclamar na polícia. Era proprietário de um salão de consumo de ópio, um homem muito importante na Cidade Murada. — E por que eu deveria reclamar? indaguei. — Por que fecharam todas as salas de ópio, disse ele muito encolerizado. — Mas estou muito satisfeita de saber que fecharam as salas de ópio, respondi. Por que deseja que eu reclame? — Porque deixaram as de heroína funcionando, e pagamos a eles a mesma quantia que os outros. Isso não é justo. Não se tratava do que era certo e errado, mas justo e injusto. Joseph foi um dos primeiros presidentes do clubinho. Não tinha nenhuma ligação clara com o crime organizado, como Nicholas e Chan Wo Sai. Quando ele estava com seis anos, seu pai casou-se de novo; e como a madrasta não gostasse dos enteados, não lhes dava o que comer. Então Joseph e sua irmã Jenny tiveram que sair mendigando. Mas um pastor de Novos Territórios os apanhou e enviou para a escola da Tia Donnie. Depois de terminar o curso primário, Joseph arranjou um quarto para morar e pôs-se a trabalhar em serviços pesados, sempre que
  • 52. conseguia algum. Pouco depois, sua irmã foi morar com ele. Depois, tipos como Nicholas começaram a fre- qüentar seu cômodo, passando a noite ali, e seu quartinho se tornou uma "incubadeira" de quadri- lheiros. Passei a visitá-los com regularidade. A irmã também estava correndo perigo moral. Aos quinze anos era muito bonita, e estava-se deliciando com a liberdade que tinha. Podia conversar à vontade com os amigos do irmão. Senti que, se continuasse moran- do com ele, ela iria fatalmente acabar tomando o caminho inevitável. Não poderia abrigar a ambos em minha casa, já que havia outra moça da Cidade Murada, Rachel, morando comigo. Mas achei que Jenny poderia vir. Convenci-a a sair de lá para ficar conosco. Arranjei uma escola secundária para ela, mas o desejo da moça era voltar para a Cidade Murada, e durante o período em que esteve conosco, causou-nos muitos problemas. Outro rapaz que freqüentava assiduamente o clubinho era Christopher, que morava num casebre. Para se chegar lá, descia-se por uma ruela escura, onde não penetrava a luz solar. Em determinado ponto, havia alguns galinheiros feitos de engradado de refrigerantes. Era ali. Subia-se uma escadinha de madeira, e estava-se na casa dele. A porta era aberta de baixo para cima, como um alçapão. Era apenas um cômodo. Uma cortina servia de tapume para o canto onde a família dormia. Nele havia apenas dois beliches e todos dormiam naquelas duas camas, os pais e seis filhos.
  • 53. O resto do aposento estava ocupado por imensas pilhas de artefatos de plástico, com os quais a mãe dele trabalhava, ganhando mais ou menos um dólar por dia. Todos os filhos tinham que ajudá-la. A filha mais nova nem chegara a terminar a escola. Aos treze anos fora trabalhar numa fábrica de artigos de plástico. E todo o dinheiro que ganhava tinha que ser entregue à mãe. E depois que chegava do serviço, tinha que trabalhar mais, pregando lantejoulas em roupas. Quando fazia uma blusa de frio, por exemplo, ganhava mais três dólares, que, naturalmente, seriam de sua mãe. Assim Christopher começou a trabalhar, e seu dinheiro também era entregue à mãe. Era uma tradi- ção dos chineses, uma lei não escrita: os filhos tinham que pagar aos pais pelo sustento deles recebido. A ambição dos pais era aposentarem-se e serem susten- tados pelos filhos. Os jovens chineses não tinham nenhuma satisfação ao receberem seu pagamento, pois nunca ficavam com ele. Os pais retinham tudo. A mãe de Christopher foi assim ajuntando dinheiro e, mais tarde, comprou um apartamento para si, fora da Cidade Murada. Muitos casais chineses têm família numerosa por razões econômicas: para que fiquem ricos ao envelhecer. Tive a impressão de que a afeição familiar não se baseava em um amor mútuo, mas, sim, em interesses econômicos. Ah Lin, a irmã mais nova de Christopher, afinal se rebelou contra aquela exploração. Conheceu em sua fábrica um rapaz que gostava dela, mas a mãe proibiu o namoro. Também não permitia que ela
  • 54. freqüentasse o clubinho, pois as atividades dele eram, em sua maior parte, recreativas. O divertimento, pura e simplesmente, não deveria existir para ela. A menina tinha que ficar em casa, e olhar os irmãozinhos, ou então montar as peças dos objetos de plástico, ou buscar água. Finalmente, a garota, com quatorze anos, fugiu de casa e foi morar com o rapaz. A mãe conseguiu pegá-la de volta e trancou-a em casa. O que ela fizera significava não apenas vergonha para a família, mas também um rombo nas finanças dela. Sendo as meninas tratadas assim, como se fossem bens particulares, não é de se estranhar que caíssem na prostituição para se libertarem. Minha tarefa era fazer o povo da Cidade Murada entender quem fora Cristo. Se não conseguiam compreender as palavras que pregávamos sobre Jesus, então nós, os crentes, tínhamos que demonstrar na prática quem ele era, pelos nossos atos e conduta. Então iniciei o que eu chamava de "andar a segunda milha". Parecia que havia muitos cristãos que não se importavam de andar a primeira milha; muitos que não se dariam ao trabalho de andar duas e nenhum que quisesse andar três. Aquele povo ali precisava que se andasse com eles uma maratona. Fui-me envolvendo cada vez mais com os rapazes, seus familiares e seus problemas. Implicava em viver diante deles de maneira prática, para que vissem quem Jesus era, e o conhecessem. Um exemplo desse tipo de conduta foi o que se deu, quando um dos rapazes me pediu que ajudasse sua irmã a conseguir matrícula numa escola secundária.
  • 55. O processo normal era ficar na fila um dia inteiro, apenas para pegar um formulário para fazer o exame de admissão. Aquela família esperava que eu simplesmente fosse à diretora e lhe dissesse: — Olhe, eu sou fulana de tal, conheço o Dr. Sicrano. Será que poderiam admitir aqui essa menina? Mas não fiz isso. Entrei na fila, como todo mundo, e eles ficaram muito espantados, pois quando haviam pedido meu auxílio, não era isso que tinham em mente. Eu só podia dar esse tipo de ajuda durante as férias, pois estava dando aulas de música em tempo integral no Colégio Anglo-Chinês para meninas. Mas durante muito tempo, muitas pessoas se agregaram a mim simplesmente pensando que, se ficassem em meu grupo, talvez conseguissem um certificado de batismo ou um documento qualquer que lhes possibilitasse emigrar para os Estados Unidos. Eram os "crentes da sopa". Tratavam-me como haviam tratado outros missionários, crendo que eu fosse uma presa fácil. Estavam constantemente pedindo dinheiro emprestado. E não acreditavam, quando eu lhes dizia que não o tinha. Os diálogos eram quase sempre mais ou menos assim: — Poon Siu Jeh, estou sem emprego e meu dinheiro acabou. — Mas eu não tenho dinheiro. — Ah, mas você deve ter sim. Você é muito rica. — Não; não tenho dinheiro nenhum.
  • 56. — Tem, sim. Você tem uma igreja na América que a sustenta. — Não, não tenho igreja. E eu vim da Inglaterra. Mas não sou sustentada por igreja nenhuma. — Ah, qualquer dia desses você pega um jato e volta para sua terra. — Não; não existe a menor probabilidade de isso acontecer, pois não tenho dinheiro para a passagem, respondia eu com toda a sinceridade. — Então seus pais lhe mandam dinheiro. — Meus pais também não têm muito dinheiro, replicava. Aquela altura, Ah Ping entrava na conversa. Ele pensava um pouco mais que os outros, e seus comentários eram sempre mais precisos. — É, talvez você não tenha dinheiro mesmo, mas sempre pode ir embora, se quiser. Nós não podemos. Não temos para onde ir. Mas vocês, os ocidentais, podem pegar o avião e ir embora, e depois se esquecem completamente de nós. — Não, Ah Ping. Não estou pensando em ir embora e esquecer vocês. Mas Ah Ping sabia falar, quando se entusiasmava. E hoje ele iria dizer uma coisa que todos eles pensavam. — Vocês, os ocidentais, continuou ele, vêm aqui e falam de Jesus para nós. Ficam aqui um ou dois anos, para aplacarem a consciência, e depois vão embora. Esse Jesus chama vocês de volta para fazer outro trabalho, na sua pátria. É verdade que lá muitos conseguem angariar bastante dinheiro para nós, po-
  • 57. vos mais carentes. Mas continuam bem, morando em belas casas, com geladeiras e empregados, enquanto nós continuamos vivendo aqui. Mais cedo ou mais tarde, você também irá embora. Era um forte libelo contra aqueles evangelistas que chegavam a Hong Kong, cantavam lindos hinos sobre Jesus e depois pegavam o avião e iam embora. — ótimo, dizia Ah Ping, ótimo para eles e para nós também. Teríamos muito prazer em crer em Jesus, se também pudéssemos pegar um avião e viajar pelo mundo todo, como eles. É muito fácil para eles cantar hinos que falam de amor, mas o que sabem a nosso respeito? Nada; não sabem nada. E não nos conquistam tampouco. Houve ocasiões em que tentei conversar com os guardas das salas de jogo, mas quando mencionava que Jesus os amava, eles acenavam a cabeça afir- mativamente. — Ótimo! Muito bom! diziam. Mas isso não significa nada para nós. E não significava mesmo, pois a maioria nem tinha idéia de quem era Jesus, e do que fosse amor. E eu continuei a pregar, dizendo que Jesus poderia dar- lhes uma nova vida, mas não pareciam entender nada.
  • 58. 5 Luz nas Trevas Jesus não apenas afirmou que era Deus, ele de- monstrou isso. Fez os cegos recobrarem a visão, os surdos, a audição, e os mortos voltarem à vida. Alguns cristãos diziam que estas coisas ainda aconteciam em nossos dias, mas eu não as estava vendo.
  • 59. Meus amigos missionários não podiam auxiliar-me muito nessa questão. Muitos deles tinham vivido sempre na China e se sentiam meio desarvorados. Alguns ainda tinham certos ranços culturais, e começaram a influenciar-me a tal ponto, que passei a me preocupar com detalhes tais como se devia usar vestidos sem mangas ou se devia ir nadar aos domingos. Eu não pertencia a nenhuma missão, e, na verdade, estava bem livre de imposições. Contudo, estava me sentindo tolhida, infrutífera. Certo dia fui tocar harmónio na Capela. Lá conheci um casal chinês que iria dirigir o culto, e percebi neles uma vitalidade e um poder que eu desconhecia. Imediatamente, tive vontade de saber por que eram tão diferentes. Não falavam inglês muito bem, e eu mal falava chinês. — Você não possui o Espírito Santo, disseram. Ligeiramente indignada repliquei que o tinha sim. "É lógico que possuo o Espírito", pensei comigo mesma. "Se não o tivesse não poderia crer em Jesus." Mas estava claro que aquele casal tinha algo que eu não tinha, e eu o reconhecera, apesar de não ter entendido bem a mensagem. Eles denominavam- no possuir o Espírito Santo, ao passo que eu preferia outra expressão. Mas, se Deus tinha outra bênção para mim, gostaria de recebê-la, e deixaria para depois a nomenclatura teológica. Então combinei visita-los em seu apartamento no dia seguinte. O apartamento deles, como milhares de outros da cidade, tinha apenas um cômodo. Havia ali uma mesa sobre a qual se viam um prato com laranjas e
  • 60. outro com pedaços de flanela molhada. As laranjas eram usadas tradicionalmente pelos chineses para qualquer comemoração, e os pedaços de flanela eram para quando eu chorasse. Senti meu coração pulsar com força, pois não sabia exatamente o que iria acontecer ali. Então me sentei, e eles impuseram as mãos sobre minha cabeça e começaram a falar repetidamente: — Agora comece a falar, agora comece a falar, agora comece a falar... Mas não aconteceu nada. No grupo de West Croydon havia algumas pessoas que falavam línguas estranhas, mas ninguém gostava de conversar muito sobre esse dom. Parecia-me maravilhoso ter uma nova língua na qual pudesse expressar a Deus todos os pensamentos, mas fechei a boca firmemente. Se Deus quisesse dar-me o dom, ele teria que fazê-lo, e não eu. Contudo, estava-me sentindo cada vez mais envergonhada, além de um grande desconforto e muito calor. Eles iriam ficar muito desapontados, se nada acontecesse. Afinal, não consegui me conter mais, e abri a boca para dizer: "Ajudem-me!" Foi aí que começou. Logo que fiz aquele esforço consciente para abrir a boca, percebi que estava falando fluentemente uma língua que nunca aprendera. Era uma língua muito bela, bem articulada, suave e coerente. Não tive a menor dúvida de que tinha recebido o sinal. Mas não me sobreveio nenhuma alegria esfuziante. Foi totalmente desprovido de emoção.
  • 61. O casal chinês ficou encantado ao ver que eu falara em línguas, embora um pouco surpreso de não me ver chorar. Mas eles choraram um pouquinho. Ainda me sentia um pouco constrangida, e saí assim que pude. Quando estava à porta, disseram-me: — Agora você pode esperar que os outros dons do Espírito vão aparecer também. Mas não entendi bem o que quiseram dizer. Na semana seguinte, todos os dias, ficava esperando que o dom de cura ou o de profecia surgissem de repente. Eram os dois únicos dons do Espírito de que eu ouvira falar. Eu não tinha dúvida nenhuma acerca da validade e do uso deles, mas não sabia quando uma pessoa reconhecia que os possuía. Outra coisa que me intrigava um pouco era o fato de não estar dominada pela emoção. Lera livros que haviam-me deixado com a impressão de que aquela experiência iria fazer-me andar nas nuvens. Procurei, então, alguém em Hong Kong que pudesse dar-me umas explicações sobre isso, mas não encontrei ninguém. Alguns amigos missionários me disseram, em tom sombrio: — Na China, aconteceu uma coisa muito perigosa que ocasionou divisão nas igrejas. Os missionários pentecostais informaram-me que haviam feito um acordo com os demais evangélicos de não conversarem com outros sobre os assuntos em que divergissem, falando só sobre Jesus. Mas o ensino sobre os dons estava na Bíblia, tinha vindo de Deus, como isso poderia ser perigoso? Com o passar dos meses, comecei a pôr de lado a questão toda. A experiência não havia mudado em
  • 62. nada a minha vida espiritual. Ainda continuava ron- dando a Cidade Murada, todas as noites ia a um culto qualquer, procurava ajudar as pessoas, mas parecia que não estava conseguindo nada. Senti como se tivesse sido enganada. "Quem eles pensam que são?" indaguei comigo mesma, na primeira vez que ouvi falar do casal Willans. Era um casal americano, a filha Suzanne e uma amiga, Gail Castle, que acabara de chegar a Hong Kong. Eles iam realizar reuniões de oração. "Hong Kong não precisa de mais reuniões de oração. Eu mesma tenho reuniões todos os dias. Eles deveriam, primeiramente, conhecer a situação da igreja aqui." Já haviam-se passado dois anos desde que eu chegara da Inglaterra, e um ano que eu supunha haver recebido "o dom do Espírito". Sentia-me uma autoridade na questão de reuniões de oração da Colônia. Mas uma amiga minha, Clare Harding, insistiu em que eu fosse, dizendo que seria uma reunião carismática. — Está bem, vou freqüentar durante algum tempo, respondi. E foi então que fiquei conhecendo Rick e Jean Stone Willans. — Você tem o dom de línguas, Jackie? indagou Jean. Ora em línguas? — Para dizer a verdade não o faço. Não vejo nele muita utilidade. Não me ajudava em nada; então parei de orar. — Mas isso é um grande erro, disse ela. Não se trata de um dom de emoção, para satisfação própria,
  • 63. é um dom do Espírito. A Bíblia ensina que aquele que ora em línguas é edificado espiritualmente. Portanto, não se importe muito com o que sente, exercite-o. E assim ela e Rick me fizeram prometer que iria orar em minha língua celestial todos os dias. E em seguida, para meu espanto, sugeriram que orássemos juntos em línguas. Eu não estava muito certa se isso era correto, pois a Bíblia ensina que as pessoas não podem falar línguas em voz alta, todas ao .mesmo tempo. Explicaram que Paulo se referia a um culto público, onde um estranho poderia entrar e pensar que estavam todos loucos. Mas nós três ali não iríamos escandalizar ninguém. Iríamos simplesmente orar a Deus numa língua que ele nos concedera. Não houve jeito de escapar, e então nos pusemos a orar. Senti-me meio ridícula, dizendo coisas que não entendia. Mas, em dado momento, eles pararam de orar e eu fui impelida a continuar. Faria qualquer coisa para não estar ali, orando em voz alta, em língua estranha, diante daqueles americanos. Mas quando pensei que estava para morrer de vergonha, Deus me falou: — Você não quer ser ridícula por amor a mim? Entreguei os pontos. — Está bem, Senhor, isso não faz muito sentido para mim, mas como foste tu quem inventaste esse dom, ele deve ser bom. Quando acabamos de orar, Jean falou que Deus lhe havia dado a interpretação do que eu dissera. Meu coração estivera clamando pelo Senhor, como se estivesse nas profundezas de um vale, e ele no pico
  • 64. das montanhas. Eu lhe dirigira palavras de adoração e suplicara que ele me usasse. Tomei a decisão de nunca mais desprezar o dom, se Deus me ajudasse a orar daquela maneira todas as vezes em que o exercitasse. Aceitei o fato de que ele estava-me ajudando a aperfeiçoar minha comunhão e súplica. E, dali por diante, passei a orar todos os dias na linguagem do Espírito. Antes de fazê-lo, porém, eu dizia: — Senhor, não sei orar e nem por quem devo interceder. Peço-te que ores por meu intermédio, e me conduzas às pessoas que te desejam. Mais ou menos um mês e meio depois, comecei a notar que acontecia um fato maravilhoso. As pessoas com quem eu falava de Cristo, criam nele. A princípio, não entendi direito, e pensei que tinha descoberto, por acaso, uma nova e excelente técnica de evangelização. Mas, na verdade, eu dizia as mesmas coisas que antes. Depois compreendi o que havia acontecido. Eu estava falando de Jesus a pessoas que realmente desejavam ouvir. Deixara que Deus participasse de minhas orações e isso tivera um resultado direto em meu trabalho. Eu estava pedindo a Deus que realizasse sua vontade por meu intermédio, quando orava na língua que ele me dera. E não poderia orgulhar-me de nada. Só poderia maravilhar-me de ver como Deus permitia que eu tivesse uma pequena participação em sua obra. E aí veio a emoção. Ela veio, quando vi os resultados dessas orações.
  • 65. Passei a conhecer melhor os Willans, e eles se me tornaram ótimos amigos e conselheiros. Experimentei mais uma vez a gloriosa liberdade de viver, que possuímos em Cristo Jesus. Ao me converter, eu aceitara o fato de que Jesus havia morrido por mim, mas a partir de então eu começava a ver os milagres que ele estava operando no mundo hoje. 6 As Quadrilhas — Hai bin do ah? De onde você é? Aterrorizado, o rapazinho fitou os quatro mem- bros da famigerada quadrilha 14K que avançavam para ele ameaçadoramente. Em gíria da quadrilha, estavam indagando a qual daqueles grupos ele pertencia. Mas o rapaz não conseguia responder, tremia demais.
  • 66. — M'gong? Não quer falar, hein? Ah Ping, o porta-voz da turma, aproximou-se mais até ficar a um passo dele. Não havia meio de escape. O rapaz estava encurralado num dos becos da Cidade Murada. Eles o atormentavam, ironizando seu medo, avançando lentamente, como que deliciando-se sadicamente com o pavor que lhe inspiravam. O primeiro soco veio com grande rapidez, e atingiu-o nas costelas — o treinamento que os chineses têm no kung-fu produz grande flexibilidade e economia de movimentos, que torna o soco preciso e mortal. O menino caiu, e logo recebeu mais pancadas no estômago, peito e virilha. Ele gemia, e se contorcia, mas não disse nada. Então os outros foram empurrando-o rua abaixo, chutando-o, enquanto ele seguia aos tropeções, e depois se afastou manquejando. Ficou então sabendo o que acontecia, quando alguém entrava em território inimigo, sem a devida proteção. Aquilo dava enorme satisfação aos membros das quadrilhas. Eles estavam no controle de tudo que se passava ali em seu território. Foi aí que fiquei sabendo que o salão que eu alugara situava-se bem no meio da área controlada pela 14K, pois acabava de presenciar aquela cena repulsiva. — Por que fizeram isso? indaguei. O que aquele rapazinho fez a vocês? Ah Ping deu de ombros. — Talvez nada, respondeu anuindo. Mas ele não se identificou, então tínhamos que dar-lhe uma lição. Provavelmente é dos nossos inimigos, o Ging
  • 67. Yu, e temos que mostrar a eles quem é que manda aqui. Nos seus primórdios, a Sociedade Tríade era uma agremiação secreta chinesa, cujos membros faziam o juramento de derrubar o governo dos opressores estrangeiros, e restaurar ao poder a casa governante da China, a Dinastia Ming. Nos dias atuais, a antiga Sociedade Tríade encontra-se degenerada, tendo-se subdividido em centenas de pequenos grupos, todos alegando ser um prolongamento da tradicional Sociedade Tríade. Na verdade, não passam de quadrilhas de marginais, que utilizam esse nome e os rituais da antiga sociedade apenas para camuflar suas atividades criminosas. No passado, o indivíduo que quisesse filiar-se a uma das sociedades tríades tinha que submeter-se a uma série de rituais. Entre eles contavam-se decorar poesias, aprender certas formas de aperto de mão e assinatu- ras, e beber sangue, bem como derramar sangue. Quando um homem entrava para uma delas, tinha que jurar que iria seguir seu "irmão" para sempre. Este era conhecido como daih lo, irmão maior; e o iniciante era o sai lo, irmão menor. E esse laço era indissolúvel. Um candidato a membro da Sociedade Tríade poderia pedir a um membro efetivo dela que o deixasse "segui-lo", e assim este se tornava seu irmão maior. Cada quadrilha possuía uma complicada hie- rarquia de deveres e posições de liderança. Alguns dos chefes eram identificados por nomes estranhos, e outras vezes apenas por números, tais como 489, 438, 26 e 415. Os membros comuns eram chamados penas de 49.
  • 68. As quadrilhas espalhavam terror por toda a Hong íong, o que facilitava a extorsão de pagamento por proteção. A Cidade Murada era sede perfeita para as quadrilhas. Ali operavam dois grupos principais, geograficamente separados por determinada rua. O Jing Yu tinha o controle de todas as salas de venda consumo de heroína. Também recebia o pagamento por proteção, e explorava a prostituição no setor a este da Rua Principal. Mas os quadrilheiros mais temidos eram os da 14K. Esse nome deriva do fato de ela haver sido organizada na Rua Wah, n.° 14, em Tantão, com o objetivo de ajudar a causa da China Nacionalista. Dizia-se que ela contava com cem mil membros em todo o mundo, e mais sessenta mil só em iong Kong, e que controlava o comércio do ópio, os antros de jogatina, filmes pornográficos, bordéis de crianças e outros negócios, no setor oeste da cidade. Seu comando era descentralizado, e a quadrilha dele cada área tinha seu próprio dirigente, que cuidava los interesses dela no local. Mas todos conheciam os chefes principais, e os membros das quadrilhas-irmãs eram chamadas de "primos". Assim, em questão de minutos, um grupo tríade poderia chamar a si dezenas de "irmãos", e, caso necessário, podia organizar ama briga em poucas horas, envolvendo centenas de quadrilheiros. Enquanto as pessoas não ligadas às tríades andaram pela cidade "rezando" para não serem detidas, até mesmo os que pertenciam a Ging Yu ou 14K, quando saíam dela, só caminhavam em seu próprio território. Eu, porém, andava por todas as
  • 69. ruas indistintamente, chegando a conhecer o lugar melhor que os próprios marginais, que se achavam restritos a apenas um lado da cidade. Os quadrilheiros que conheci observavam aquela velha máxima de que existe honra até mesmo entre ladrões. Em troca de uma obediência irrestrita por parte do seu sai lo, o daih lo lhe prometia proteção. Se um irmão menor fosse preso, o seu irmão maior tinha que tomar providências, para que na prisão ele recebesse comida, drogas e proteção, embora fizessem restrições ao uso de drogas, já que sua ausência diminuía sua utilidade para a quadrilha. E foi minha preocupação pelos viciados que mais tarde me aproximou de alguns líderes tríades, levando-me a tomar chá com eles. Não fiquei espantada ao saber que Christopher iria ser iniciado numa 14K. Como poderia andar por ali, se não pertencesse a uma quadrilha? Ele freqüentara o clubinho com certa assiduidade, mas, depois de certo tempo passou a me evitar. Todas as vezes que tentava aproximar-me dele, desaparecia. Começou a jogar e estava sempre em companhia de marginais. Contudo, não queria que eu visse o que estava fazendo. Chegou o dia em que o apanhei. Encontramo-nos frente a frente, num beco muito estreito, e ele não poderia dar para trás. Estava encurralado. Eu carregava meu pesado acordeon e pedi-lhe que carregasse o instrumento para mim, à oficina de consertos. E enquanto caminhávamos, eu ia conversando com ele. — Christopher, em sua opinião, por que Jesus veio ao mundo?
  • 70. Ele não respondeu. — Foi por causa dos ricos ou por causa dos pobres? continuei. — Por causa dos pobres, disse. — Mas ele ama os bons ou os maus? indaguei. — Jesus ama os bons, Sr.ta Poon. — Errado. Sabe de uma coisa? Se Jesus vivesse no mundo hoje, estaria aqui na Cidade Murada, sentado naqueles engradados de laranjas, conversando com as prostitutas e cáftens, bem lá na lama. Não é correto dizer a um chinês que ele está errado, mas eu estava ansiosa para que ele compreen- desse o que eu queria comunicar-lhe. Não era hora de me importar com convenções. — Era nas ruas que ele passava grande parte do tempo, conversando com criminosos conhecidos, e ia numa igreja arrumadinha e limpa, esperando que os bonzinhos fossem lá. — E por que ele fez isto? perguntou incrédulo. — Porque foi para isso que veio, respondi lentamente. Não foi para salvar os bonzinhos, mas para salvar os maus, os perdidos. De repente Christopher parou. Estava pasmado com o que ouvira. Aquela altura, tínhamos saído da idade Murada e passávamos pela rua do mercado, ele disse que queria ouvir mais, e então deixamos o acordeon na oficina ali perto e nos sentamos num banco público. Narrei-lhe a história de Naamã, o general que fora atacado de lepra, e concluí: — É muito simples. A única coisa a fazer é buscar Jesus e ser purificado.
  • 71. Os veículos passavam por nós aos roncos; o povo conversava em altos brados, como se faz em Hong Kong. Um avião desceu para aterrissar. Mas hristopher não estava escutando nada. Tinha os olhos fechados e falava baixinho. Estava confessando a Jesus que falhara em sua vida, e lhe pedia que o purificasse. E sentado ali à beira da rua poeirenta e barulhenta, ele se tornou crente. No sábado seguinte, ele apareceu no clubinho e stemunhou diante dos outros, dizendo que na semana anterior não cria em Jesus, mas agora o conhecia, na palavra foi acolhida, a princípio, com silêncio. Ias logo começaram as chacotas e risos. Rapazes de família ruim simplesmente não se tornavam crentes, isso era para moços bons, educados, classe média. Ele devia estar brincando. Mas não estava. E recusou-se a continuar com sua iniciação na quadrilha. Já estava com o livro de regulamentos que deveria memorizar, mas devolveu-. Uma coisa dessas nunca acontecera antes, no meio aquela gente. E sua decisão foi uma revelação para mim também. Jesus estava em Hong Kong também, tanto quanto estava na Inglaterra; e aqueles que o buscassem poderiam encontrá-lo. A transformação que se operou em Christopher foi notável. Passou a trabalhar tão bem na fábrica, que foi promovido. Passava todo o tempo livre no clubinho, e aos domingos ia aos cultos na igreja. Continuei a orar em Espírito em minha devoção particular, e outros rapazes como Christopher também fizeram a decisão de converter- se a Cristo. Reuníamos para estudar a Bíblia e orar,
  • 72. muitas vezes, e um dia, quando estávamos orando, um deles recebeu uma mensagem em línguas. Esperamos uns instantes, e daí a pouco Christopher começou a dar a interpretação, em cântico. "O Deus, que me salvas das trevas, Dá-me força e poder Para que eu viva no Espírito Santo, Lute contra o diabo com a Bíblia, Fale aos pecadores desse mundo E os leve a pertencer a Cristo." Bobby, um outro rapaz, também recebeu a mesma interpretação. Embora nosso grupinho estivesse crescendo, nem todos os rapazes que freqüentavam o clube sabiam ao certo por que eu estava ali. Muitos vinham apenas por causa das vantagens que obteriam. Fazíamos piqueniques aos sábados ou acampávamos, e eles não tinham que pagar nada. Contudo, não eram gratos. Consideravam-se pessoas necessitadas, e supunham que eu era sustentada por uma instituição muito rica. Eram exigentes e agressivos. Um desses era Ah Ping. Naqueles meses e anos de contato, eu chegara a conhecer Ah Ping muito bem. Ele ia ao clubinho muitas vezes. Fora iniciado numa quadrilha tríade com apenas doze anos, e já tinha fama de bom lutador. Certa noite, quando cheguei ao clubinho, ele estava vagando pela rua. Eu me sentia meio deprimi- da, e ele percebeu isso.
  • 73. — É melhor você ir embora, disse. Largue este lugar, Poon Siu Jeh. Não adianta trabalhar por nós. Procure estudantes bem comportados e pregue para eles. Eles serão ótimos crentes. Nós não prestamos, (ão sei por que você não desiste. Você arranja estudo ara nós, e não vamos às aulas. Arranja empregos, e nós os perdemos. Nunca mudaremos. Então, por que inda fica aqui? — Fico porque foi isso que Jesus fez por mim. Eu também não o queria, mas ele não esperou que eu o quisesse, para depois morrer por mim. Ele morreu, morreu por mim, quando eu ainda o odiava. Apenas disse que me amava e que me perdoava. Foi esse Jesus que veio ao mundo e ressuscitou os mortos, que fez milagres e só praticou o bem. E ama você também, do lesmo jeito. A princípio, Ah Ping não disse nada, depois falou. — Não pode ser; ninguém ama a gente desse jeito. Quer dizer, nós... e sua voz ficou embargada. Mas logo em seguida ele prosseguiu: — Quero dizer, nós vivemos estrupando, roubando, brigando, esfaqueando. Ninguém pode nos amar assim. — Pois Jesus os amou. Ele não gosta das coisas que vocês fazem, mas ama vocês. Isso pode parecer stranho, mas ele disse que todas as coisas erradas que vocês praticaram eram dele, e quando ele morreu ia cruz, declarou-se culpado de todos os nossos rimes. Isso é muito injusto, não é? Mas se você lhe entregar todas as coisas ruins que já praticou, ele lhe dará sua
  • 74. nova vida. É como se você lhe entregasse sua roupa suja e recebesse as dele, completamente limpas. Ah Ping estava esmagado. Era difícil acreditar que existisse um Deus assim. E ele se sentou ali e pediu a Jesus que o perdoasse e transformasse sua vida. Ele foi o primeiro quadrilheiro a ligar-se aos Tentes. Quando estava com apenas quatorze anos, ima jovem prostituta ofereceu-se para "sustentá- lo" ;m troca de proteção. Mas a partir de então todo o seu nodo de vida se modificou de forma radical. Todas as noites ele levava seus "irmãos" para o clubinho e me pedia que lhes falasse de Jesus. Os poucos freqüentadores do clube que tinham a vida certinha — os alunos da escola — pararam de ir, pois sentiam que estavam sofrendo discriminação. Eu achava, porém, que havia dezenas de lugares em Hong Kong onde aqueles rapazes podiam receber cuidados e assistência, e então não impedi que se fossem. E foi somente muitos anos depois que conseguimos reunir esses dois tipos de pessoas tão diferentes: os maus e os "bonzinhos". Alguns amigos de Hong Kong vieram a conhecer Ah Ping e o convidaram para dar seu testemunho na igreja, num sábado. — Tome muito cuidado, disse-lhe eu. Satanás não gosta quando uma pessoa fala de Jesus. Provavelmente ele tentará atacá-lo de alguma forma daqui até sábado. Vá direto para casa e não pare em lugar nenhum. — Está certo, está certo, Sr.ta Poon, respondeu acenando afirmativamente, com docilidade.
  • 75. Mas logo que se afastou, rebelou-se. — Diabo? Bobagem. Conheço estas ruas como a palma da minha mão. Cuidado com quê? E foi dar umas voltas, antes de ir para casa. De repente, sete homens saíram de um beco escuro e o atacaram. Eram quadrilheiros Chiu Chow. Mais tar- de, quando Ah Ping me relatou o fato, disse: — Quando eles se aproximaram, ocorreram-me dois pensamentos. O primeiro foi: "Ah, isso é culpa da Sr.ta Poon". E logo em seguida: "Você deve orar." Então ele ficou orando, enquanto os homens o agrediam a pauladas, deixando-o no chão inconscien- te. — Logo que comecei a orar, meu pai veio descendo a rua e quando eles o viram, fugiram correndo. Se não fosse isso, teriam me matado. Mas, mesmo assim, ele ficou com um ferimento grave nas costas e um corte na garganta. O pai foi buscar socorro com seus irmãos da quadrilha 14K. Levaram-no ao médico, e este afirmou que ele não poderia andar nem falar pelo menos durante duas semanas. Os irmãos de Ah Ping decidiram vingar a agressão que ele sofrera. Fizeram uma reunião na sede da quadrilha para combinarem um plano de ação. Depois pegaram faccões e disseram a Ah Ping: — Vamos esfaqueá-los, está bem? Falando com muita dificuldade por causa da garganta ferida, o moço replicou: — Não; agora sou cristão e não quero que revidem.
  • 76. Depois ele chamou um ou dois membros de nosso clubinho que eram crentes, foram para lá e puseram-se a orar. Oraram a noite toda pelo grupo que o tacara. Além de orar pelos inimigos, pediu aos outros rapazes que impusessem as mãos sobre ele e orassem ara que fosse curado. No dia seguinte, estava completamente bom, dando com toda clareza. Aliás, dois dias depois ele falou na igreja. Testificou da mudança que se operara m seu coração e disse também que nunca mais iria menosprezar o diabo. Sabia que ele estava sempre por certo. Mas as brigas de quadrilhas eram um problema que os convertidos teriam de enfrentar com freqüência. Lembro-me de um culto num domingo à noite na Igreja Oiwah. O simples fato de poder ir à igreja era ator de orgulho para aqueles chineses um pouco mais prósperos que os outros. Ergui os olhos do teclado e pude ver alguns professores da escola com os vendedores do mercado e verdureiros. Todos com aparência de gente direita, séria e respeitável. O fato de eu me preocupar com os jovens marginais deixava-os bastante espantados. Não gostavam muito de ver aqueles rapazes na igreja, ao passo que eu ficava lá, sentada, irando para que eles fossem. De repente, a porta se abriu de ímpeto, e os garotos entraram. A aparência deles provocou repulsa na congregação. Mas até eu me espantei, pois eles estavam num estado terrível: sujos de lama e sangue e as roupas rasgadas. Vários tinham arranhões no rosto. Todavia, sentaram-se e
  • 77. permaneceram quietos durante todo o tempo. Logo que terminou o culto, fui apressadamente até onde se achavam, para saber o que havia acontecido. Ao que parecia, haviam caído numa armadilha. Entraram num banheiro público para se arrumarem um pouco antes de irem à igreja; um grupo de quadrilheiros saltou por sobre os compartimentos e os atacou violentamente com bastões. Vários deles ficaram bastante feridos. Levei-os a um hospital. Estava muito feliz de eles terem me procurado na igreja, após uma luta tão terrível. Ingenuamente, achei aquilo maravilhoso. "Graças a Deus", pensei, "eles não foram procurar seus chefes de quadrilha, mas vieram procurar os cristãos." Pouco depois eu fiquei sabendo que o resto da congregação encarou o incidente todo de uma pers- pectiva diferente. Estavam enfurecidos pelo fato de os rapazes terem tido a ousadia de entrar na igreja naquele estado, e tão mal cheirosos. Não aceitavam a idéia de que aqueles garotos pudessem tornar-se crentes. Pensavam que uma mudança interior tinha que ser seguida de uma mudança exterior, e que eles logo deviam passar a usar gravata e sapatos de cadarço. E mostravam-se bastante transtornados por eu haver permitido que entrassem na igreja pouco depois de terem participado de uma cena de violência. Pelo que sabiam, nunca nenhum deles se tornara cristão. E quando pedi para que fossem batizados os que haviam-se convertido, a resposta foi um "não" direto. Os rapazes precisavam antes passar por um período de provação.